sábado, 19 de junho de 2010

O RELÓGIO


Por mais uma vez, Dona Penha acordou sentindo um calor fora do comum. Nos seus setenta e poucos anos, talvez não lembrasse de um verão tão quente em João Pessoa. Em verdade, estava em Cabedelo, mas como «em sua época», como afirmava, «tudo era João Pessoa». Levantou-se, lentamente, com a certeza de que seus ossos estavam um pouco mais frágeis do que ontem. Procurou os óculos, tateando com a mão direita na pequena escrivaninha ao lado da cama. Colocou-os. Levantou. Dirigiu-se ao banheiro, onde satisfez as primeiras necessidades do dia em nome da boa higiene. Voltou ao seu leito e arrumou a cama cuidadosamente. Era um orgulho diário, um momento que refletia e sentenciava: «Isso, sei fazer como ninguém!».

Preparou seu café, logo após abrir todas as janelas do apartamento. Que calor! Colocou um ovo para cozir. Pão integral, queijo, iogurte... Tudo pronto! Sentou-se à mesa. Lembrou do tempo em que a mesa era mais animada. Havia mais gente. Havia assuntos. Hoje? Só lhe resta lembrar. E assim, lembrava...

Vestiu uma roupa leve e saiu para sua caminhada. Sete horas da manhã e o calor já incomodava. Acabou decidindo que caminharia um pouco menos, pois já estava mais cansada do que o comum. Em casa, sentia as artrites e artroses suas companheiras, cada vez mais, presentes. Ligou a TV. Os programas não a interessavam mais em nada. Pelo menos o alto volume do aparelho, dava uma sensação de se estar acompanhada, enquanto preparava seu almoço. Olhou para o relógio. O encontro dos ponteiros anunciava a hora da segunda refeição. Sentada à mesa, sentia novamente a falta de uma companhia. Onde estariam seus filhos e netos? Todos estão sempre ocupados demais. A vida hoje é tão corrida, que já não se sobra tempo para se viver.

Após o almoço, lavou o prato e as poucas pequenas panelas. Misssão cumprida, sentou-se diante da TV para mais uma sessão de programas vazios. Olhava o relógio, mas a tarde era sempre lenta. Parecia o período mais perpétuo do dia. Resolveu limpar suas coisas. Por alguma razão, escolheu espanar os velhos álbuns de fotografias. Ao final, acabou por enxugá-los das tantas lágrimas que rolaram. «Estou por demais emotiva!», pensou. O calor sufocante aumentava, decidiu ir caminhar.

Dona Penha tirou as sandálias e caminhou um pouco na beira-mar de Intermares. Olhou a paisagem com uma imensa alegria. Admirava aquelas pipas enormes e coloridas que arrastavam os jovens sobre uma pequena prancha. Olhava as belas meninas em trajes diminutos desfilarem. Impressionava-se como a juventude de hoje era desinibida. Assistia aos abraços e beijos calientes dos enamorados. Sentia saudade dos abraços fortes e dos arrepios do amor.

A noite finalmente foi chegando e a hora de retornar também. Já em casa, tomou um demorado banho. Após se vestir, pensou em ligar para os filhos. Mas, certamente, estariam, ainda, presos no trânsito, cansados e sem tempo para perder com a velha mãe desocupada. Resolveu comer uma sopinha no jantar. Sorveu sua porção lentamente. Olhava o relógio, mas não era a hora do jornal ainda. Impresionava-se como o tempo parecia parar, quando antes a ampulheta da vida pareceu se esvair tão rapidamente. Enfim, o jornal com as mesmas notícias. Depois, a novela com a mesma história.

Preparou-se para se deitar. Vestiu o velho e amado pijama de seda. Sentou-se à mesinha de estudo em seu quarto, abriu a Bíblia e começou a ler. Às dez em ponto, leu o último versículo:

- O Pai ama o Filho, e todas as coisas entregou nas suas mãos. (João 3:35)

Beijou seu crucifixo. Orou com as mãos sobre a Bíblia. Abriu um pequeno pote e despejou o cianureto sobre o copo d`água. Suspirou profundamente e bebeu. Enfim, Dona Penha se deitou em busca de uma nova vida, fosse ela eterna ou não. Enquanto ela não vinha, olhava atentamente para o relógio.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O TEMPO POR X e Y*

*para quem se admira com os mistérios da ampulheta da vida


X: - Você já parou para pensar sobre o tempo?
Y: - Bem... Já. Afinal, quem não? Queria ter o tempo em minhas mãos.
X: - Estava pensando acerca do tempo perdido. Daquilo que poderia ter feito...
Y: - Tempo perdido?!
X: - Sim. Pense na seguinte hipótese: se o tempo perdido pudesse ser encontrado o que ele diria?
Y: - Nada, acho. Ou poderia agradecer ser encontrado. Talvez, falasse de onde estava. Mas onde será que estaria ele?
X: - Perdido! Em algum lugar no passado.
Y: - Visto assim, trata-se, sem dúvida, de um sujeito cabeça dura!
X: - Quem? Eu? O tempo perdido? Ou o passado?
Y: - O passado. Ele se vai sempre e nunca volta. Ficam todos relembrando dele, nostálgicos... As oportunidades que nele se perderam.
X: - Mas, pelo menos, há o presente, aqui, conosco. Sabe de uma coisa? Popular é o futuro! Todos falam dele no presente, e sempre falaram no passado.
Y: - Verdade. Mas o futuro é muito ingrato.
X: - Ingrato? Por que?
Y: - Nunca aparece... Nada sabemos ou temos certeza dele. Portanto, é tudo mera especulação. É impossível dominar o acaso.
X: - Nunca tinha pensado nisso. Mas entendo... Ficamos, aqui, sonhando cheios de esperança... Acho que a resposta é “ter fé”!
Y: - E quem não tiver fé? Eu não tenho fé alguma.
X: - Estará condenado a vagar perdido no tempo. Será sua sina, amigo.
Y: - Coitado de mim, perdido no tempo que pode está perdido no passado...
X: - Mas sempre há o presente. Apenas ele pode nos ajudar.
Y: - De fato, temos apenas o presente! O passado está perdido e o futuro é incerto!
 
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