sábado, 18 de setembro de 2010

Encontro com Vó

A medicina não é um ofício fácil. Exige uma vocação do seu exercente, um chamado quiçá divino, na luta pela cura. Tal ofício, a despeito de sua beleza humanitária, nem sempre é prazeroso. Primeiro, tem-se que considerar a extensa maratona até o pseudolivre exercício da medicina. O desafio se anuncia no vestibular, sempre muito concorrido, e se estende por cerca de seis longos anos de graduação, até a definição da área de especialidade desejada. Esta última etapa transcorre em um intervalo de dois a cinco anos, dependendo da especialidade. No entanto, após estes obstáculos, o mar de rosas se instala em consultórios frios, onde os pacientes são recebidos por ferozes cães secretários tão higienizados quanto à moral dos mentores do cenário que a todos ali circunda. A indústria da cura, enfim, premia aquele que vocacionado optou pela vida de pajé businessman. Foi o que fiz.

Mas a verdade é que a faculdade é um poço de incerteza e superficialidade. Decora-se muito e se entende pouco dos fins e meios. Diagnóstico: o «Te vira!», na fase terminal (a residência). É na residência médica que se apreende a essência do ofício, o verdadeiro aprendizado para ser médico. Pois, é, lá, abandonado num plantão, em plena madrugada, que o futuro curandeiro, já Doutor, se acotovela com a casta dos guerreiros enfermeiros na tentativa de salvar vidas. Afinal, Hipócrates nos faz jurar que não nos omitiremos na prestação de socorro a quem quer que necessite. Foi justamente quando estava em residência, no sofrível ambiente ambulatorial do hospital universitário, que testemunhei o que agora passo a relatar.

Não sei exatamente que horas eram, também, neste episódio, a hora não é importante. Sei que era madrugada. Daquelas mais frias, que o mês de julho traz à Campina Grande. Estava, naquele dia, incumbido da pediatria da oncologia. A verdade é que, aquela altura, minha percepção médica já estava bem formada e não mais me sensibilizava com os pequenos corpos débeis e calvos que habitavam aquela ala. Ocorre que, desde o nascimento do meu sobrinho, passei a imaginar o quanto algumas vidas tinham tanto a mais em relação às outras. Enfim, resolvi aproveitar a oportunidade e verificar o trabalho dos enfermeiros quanto ao respeito aos elixires farmacológicos indicados por meus colegas de jaleco.

Examinei o primeiro quarto. Estava tudo em ordem. Eram dois casos similares, medicação parecida, com os ajustes devidos em face da evolução de cada quadro patológico. Então, adentrei, no segundo quarto, para minha surpresa, na penumbra, visualizei uma velha Senhora, vestida em lã, com lenço na cabeça. Não consigo lembrar seu nome, talvez, lamentavelmente, eu nem o tenha perguntado. Assim, neste momento, vou tratá-la de “Vó” apenas. Não compreendi como ela ali tinha se instalado uma vez que era uma área que não comportava acompanhantes. Foi então que perguntei:

─ A Senhora entrou aqui com autorização de quem?

─ De fato me chamaram aqui. Vim e eles estavam ainda acordados, brincamos e conversamos um pouco. O Lucas quer ser goleiro de futebol. João metaleiro. Nem sei bem o que é ser isso, mas ele falou que vai usar um cabelão enorme. Adorei! ─ Vó falou, então, calmamente.

─ E não avisaram a Senhora que tinha que sair? ─ insisti na tentativa de elucidar para Vó que estava ela infringindo uma norma do hospital.

─ Não. Nada me disseram neste sentido. Não hoje. Você vai me expulsar? Sei que podes fazê-lo, afinal o Doutor estaria com sua plena razão. Mas é que amo esses meninos! ─ respondeu Vó.

─ Não vou expulsá-la, mas que isto não se repita. Tá certo? ─ sentenciei.
─ Muito obrigada. É que estes meninos são irmãos e me impressiona a vontade que demonstram em seguir seus sonhos. ─ disse Vó.
─ Lamento uma mesma família ter dois meninos doentes. Pode ser hereditário. Desculpe... A senhora é parenta próxima? ─ perguntei.

─ Sim. São filhos praticamente. O Doutor está certo. É hereditário. Como tudo que temos e somos, outros já tiveram e foram. O Doutor sempre quis ser médico? ─ perguntou Vó.
─ Bem, sempre quis sim. Só quando eu era muito menino quis ser malabarista. ─ respondi aquela altura, confesso, já simpatizando com Vó.

─ Você não deveria ter desistido, seria um ótimo malabarista tenho certeza. Ademais, faria vários pequenos como estes dois aqui sonharem em ser malabaristas, também. Deixe-me ver suas mãos! – estendi as mãos e Vó as massageou com firmeza, e falou – Como são firmes! Demonstram uma musculatura bem coordenada. Daria um bom cirurgião.

─ Estou caminhando neste sentido, mas a cirurgia que realmente quero é a cardíaca e isso me fará ficar aqui mais três anos, e não sei se vale a pena... ─ foi quando Vó me interrompeu.
─ Vai desistir de seu sonho de novo Doutor? ─ perguntou Ela.
─ Não sei. Decidirei oportunamente. Mas a senhora quer algo para comer? Posso tentar trazer-lhe logo cedo uma refeição, junto com a dos garotos. ─ Ofereci a refeição meio sem jeito, pois teria que bancar a mesma, uma vez que o hospital não alimenta acompanhantes lícitos, imagine, então, os ilícitos.
─ Não se preocupe. Tudo que quero está aqui junto, e logo que amanheça partirei esperando não causar problemas. Obrigada, Doutor. ─ Logo que agradeceu, Vó segurou minha mão e a beijou com ternura.

Confesso que não mais lembro o que, ou mesmo, se falei algo quando da despedida. Apenas me lembro que ao voltar para a sala do plantão cochilei, confortavelmente, invadido por uma calma tremenda. Acordei com a enfermeira, também, de plantão me perguntando sobre uma certa medicação. Logo que respondi, olhei para janela e o sol começava a saudar o dia. Lembrei de Vó e fui ao quarto onde estavam os irmãos. Era o quarto de Lucas e João. Lá, ainda dormiam e Vó não mais estava. Perguntei a enfermeira se ela tinha visto a simpática Senhora, mas a mesma me respondeu negativamente.

Apesar de meu plantão acabar às seis da manhã, esperei os garotos acordarem, o que só aconteceu por volta das sete para a tomada da medicação. Foi, então, que conversei com Lucas sobre quem seria Vó. Ele não pareceu entender bem o que eu perguntava, mas confirmou que queria ser goleiro de futebol. Queria ser o guarda-redes do Flamengo. João acordou e falou de como gostava de rock, na verdade ele “curtia heavy”. Quando perguntei pela terna Senhora, se seria sua avó ou tia, ele respondeu que era “Vózinha”. Ele então falou:

─ Ela é minha amiga do hospital, disse que também sente dores no coração quando entra aqui. Mas que um dia vai ficar boa. Disse que eu ia tocar na banda de heavy quando eu crescer. E eu falei para ela que queria ver Lucas levar um frango. Ela disse que eu ia, pois ele ia agarrar na televisão um dia.

A verdade é que ao examinar os prontuários de Lucas e João constatei que não eram irmãos. Continuei visitando aqueles meninos, tentando reencontrar Vó. Foi em vão meu intento. No entanto, pude ver dois pacientes de leucemia curados, em meses, numa evolução constante de seus quadros. Desde lá não consigo esquecer Vó, e não consegui mais abandonar meus sonhos. Sou cardiologista, e uma vez por semana me dedico a visitar hospitais de câncer de idosos e crianças onde converso e faço malabarismos para entretê-los. E é fazendo esquecê-los do tempo, que descobri meu espaço. E se Vó não quis, ou não pode, mais me visitar, acho que Ela teve Seus motivos. E seja lá qual forem Suas razões, que assim seja Vó. A cada sorriso que recebo, sou mais grato a Ela, e me aproximo da felicidade.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Jesus encontra Zaratustra

Num lugar perto do longe um encontro quase surreal foi sacramentado. Poucos poderiam prever, mas alguns saberão, ao tempo devido, refletir acerca das conseqüências transcedentais deste único diálogo.

Lá estava Zaratustra debaixo de uma jaqueira farto ao lado de dezenas de caroços. Jesus se aproximou, olhou Zaratustra com seus francos olhos negros, sorriu de forma fraterna como só ele sabia, foi quando ouviu o balbucio do profeta:

- Se queria jaca já era... acabou... a última comi nesse instante.

Jesus com extrema simpatia esclareceu:

- Não, não amigo. Venho caminhando faz um bom tempo e fui atraído pela sombra desta linda árvore. Posso compartilhar?

Zaratustra respondeu prontamente:

- Pode sim. Mas só evite ronco e flatulência, pois estou no desjejum.

Jesus gargalha e se encosta ao tronco, e pergunta:
- O amigo o que faz?

Zaratustra respondeu:
- Faço minha parte na missão te todos. Esclareço, levo o que sei a massa ignorante dos humanos que ainda não percebem a existência do super-homem.

Jesus:
- Entendo esta dificuldade de ensinar. As pessoas se julgam cientes de tudo e temem mudanças, não é fácil apresentar-lhes os ensinamentos de meu Pai.

Zaratustra:

- Seu pai era profeta? Professor?

Jesus:
- Meu Pai é o Criador de tudo e de todos. É seu pai também.

Neste momento Zaratustra, interrompeu:
- Meu acho que não. Deus? É ele?

Jesus:
- Este é o seu nome mais popular.

Zaratustra:
- Você num herdou muita coisa, né?

Jesus:
- Bem, herdei a luz, o caminho, penso ser muito mais que preciso.

Zaratustra:
- Mas luz não enche barriga, e caminho dá é calo no pé. De qualquer forma meus pêsames.

Jesus:
- Pêsames?!

Zaratustra:
- Ora, claro! Pela morte de teu Pai.

Jesus:
- Mas irmão, ele não morreu. O seu Espírito é Santo e imortal. Continua vivo em mim, e você...

Zaratustra:
- Em mim mesmo não... A verdade é que você está só no mundo.

Jesus:
- Velho andante. A solidão te arrebatou a noção do mundo eterno.

Zaratustra:
- Nada é eterno... A solidão me fez compreender que o super-homem governa a si próprio e não merece por isso nenhuma compaixão.

Jesus:
- Façamos um trato irmão. Liberte-se de seus preconceitos e abra seu coração para as palavras que agora direi...

Zaratustra:

- Ô menino danado! Que abrir coração! Meu coração é forte e já não se emociona com hipóteses. Mas façamos um trato... Tu silenciarás e venerarás teu Pai. Eu celebrarei o super-homem, e assim viveremos em paz neste mundo.

Jesus com um largo sorriso nos lábios:
- Como queira velho andante, o tempo nos pertence, a paz temos realmente que conquistar. Mas um dia se entregarás ao amor do Pai. Pois, ao fim só há conforto na fé.

Após estas palavras, encostados na jaqueira, Jesus e Zaratustra tiraram um merecido cochilo.
 
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