domingo, 5 de dezembro de 2010

O SALTO ALTO

Acordou com uma taquicardia abrupta, daquelas que assustam o coitado por assombrar a alma com as dúvidas mais impiedosas da existência. Rapidamente, com a mão esquerda, examinou a cama, mas não havia nada. Pior, não havia ninguém. Ela não estava mais lá. Tentava entender como tudo aconteceu. Não sabia. Não conseguia aceitar a presença tão marcante da ausência dela. Ela era linda. Seu corpo um templo de uma luxúria sagrada um caminho de rendenção e rendição sem volta. Justamente, em suas trilhas ele se perdeu. Perdera a razão, os bens, a cabeça e o sono.

Na companhia de um silêncio estérico, os ponteiros teimavam em retardar os seus passos. Incorformado e nervoso, há dias que, nessas horas, convocava o seu amigo escocês: «Venha, Johnnie Walker!» As primeiras doses eram reflexivas. Da quinta em diante, seguia um desabafo. Johnnie era um ótimo ouvinte. Não interrompia. Entretanto, até Johnnie tinha um limite. E quando ele menos esperava, o companheiro e ouvinte fiel já não estava mais lá.

Trôpego, ziguezagueava inquieto. Chorava e sorria com intensidade. Abria o computador e via as fotos, uma a uma. Apagava algumas, depois se arrependia amargamente. O dias e noites, assim, foram passando. As garrafas vazias iam se acumulando em uma estante. Devorava os bilhetes guardados, as cartas arquivadas até os e-mails armazenados. Mas, ao fim, sabia que ela não mais voltaria. Não era possível.
Até que, naquela madrugada, encontrou um sapato dela. Era um belo sapato vermelho de veludo. «Uma peça linda para um pé lindo.», pensava. Lembrou de como ela adorava usar vermelho. Adorava as rosas. Adorava os jardins. Cultuando aquele salto alto, escreveu em um guardanapo:

«Ao longe avisto sua chegada
A alegria percorre meu corpo
Esconderijo não há no entorno
A rendição é então anunciada

Cada movimento, cada passo
Exemplo vivo do descompasso
No fluxo das minhas artérias
Que clamam na mais vil miséria

A agora sanguínea correnteza
Revolta constante, reluntância
Numa eterna e ferina ânsia
De reconquistar tua beleza»


Em prantos, subiu as escadas. No último pavimento, caminhou pela cobertura alucinado. Seus soluços eram engasgos. Subiu no parapeito do edifício e olhou o horizonte com a vista turva. Foi, justamente, quando a viu de braços abertos. Linda como nunca. Ela usava o salto alto vermelho. Não titubeou. Pulou. Foi um salto alto como nunca mais daria igual para os braços de sua amada.
 
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