domingo, 23 de maio de 2010

SOLIDARIEDADE

Alfredo era um cara conflituoso. Namoro em crise, farras prosperando. Na verdade, parecia, sempre, imune aos abatimentos, tristeza, decepções e demais mazelas do coração. Era sexta-feira e a namorada ligara com aquele ar fúnebre: “Precisamos conversar...” Nestes instantes, a percepção masculina capta o odor típico da propagação da combustão do pavio. Em outros termos, é bomba chiando na certa!

Chegou à casa da amada por volta das 21:00 horas. Sentou-se... e o resto veio em cascata. Você isso! Você aquilo! Você isso naquele dia! Você aquilo no centésimo quarto dia de namoro... Até Alfredo, que era calmo, explodiu. Pediu a sentença com dispensa de relatório. E lá veio: “Isto Posto, julgo extinta nossa relação sem direito à apelação”. Alfredo renunciou a qualquer recurso, e ligou para os amigos, e, logo, encontraram-se no bar de costume: o Jam Pub.

Lá, relatou o ocorrido, e, obviamente, recebeu, regada a cerveja, toda a solidariedade dos amigos. Paulo era o mais legal, disse tudo que um homem quer ouvir nestes instantes de abandono.

- Você é um cara legal, Alfredo. Liga não! Mulher tá feito cotovelo em feira, uma batendo na outra...

Alfredo respirou e bebeu, depois, bebeu mais. Estava novo. Estava livre, solto, uma quase-libélula, pensou. Mas logo corrigiu, também em pensamento:
- Que viadagem, libélula que nada! Sou um carcará e vou caçar.

Olhou para os lados, a galera tava animada, a banda tocava System of a down, Chop Suey. De repente, a sorte soprou de seu lado. Lá estava Natasha. Ela era linda, um corpo daqueles que nenhum homem resiste olhar e que muitos acham que não dá para pegar. Ela dançava, próxima ao balcão muito animada e sozinha. Um copo na mão, um cigarro na outra. Então, ela soltou o copo no balcão e sorriu para Alfredo, que a olhava fixamente. Ele se aproximou, apresentou-se, beijaram-se na face, conversaram amenidades. Logo, já estavam dançando, quando o beijo lascivo veio, sem origem precisa, afinal ambos queriam aplacar a atração que sentiam.

Alfredo nem sabe quanto tempo passaram se beijando, eram sessões ininterruptas. Só havia espaço para um trago, ou mais um gole, fora isso, no máximo, um cochicho rápido com algum amigo que passava. Acontece que Natasha, explicitamente, passou a declarar-se inconformada com a hipótese de ir para casa às quatro da manhã. Por estas alturas, Alfredo já não era um exemplo de raciocínio rápido e lógico, e largou a proposta indecente:

- Vamos para um local mais reservado, porém não menos animado? Pode ser?

Natasha, com a língua furtiva entre os dentes, e em contato com a orelha dele apenas respondeu:

- Pode. Por que não? Basta dizer onde, que vamos agora...

Alfredo então passou a ter dois problemas. O primeiro era: Para onde ir? Mulheres sempre são imprevisíveis, e motel na primeira noite é sempre um risco de fiasco. O segundo era como ir. Não estava de carro. Ainda buscando as respostas que precisava, ele avistou Paulo, o amigo legal.

Paulo estava em pé, mas ameaçava mudar de posição, rapidamente. Os corrimões do bar eram uma idéia fantástica, além de uma utilidade latente. Alfredo falou com Natasha, pegou Paulo, e foram os três pro estacionamento. Paulo mesmo com problemas visíveis de áudio e imagem, observou Natasha e elogiou o amigo na frente da menina:

- Filho da Puta! Que mulher é essa, meu irmão? Ela num tem uma amiga igual a ela? Uma irmã? Gêmea talvez?

Todos riram, e ele desabou no banco de trás do carro. Alfredo levou Paulo para seu apartamento e, com a ajuda de Natasha, o jogou na cama. Graças a ela, Paulo não dormiu de sapatos e ainda bebeu um copo de água providencial.

Missão fraternal cumprida. Alfredo caminhava para a porta do Apartamento quando Natasha o puxou. Ainda no primeiro beijo, caíram sobre o sofá, e deste para o chão. Em minutos, estavam nus no carpete da sala, ao som de um DVD de Pearl Jam. Alfredo não sabia quanto tempo tinha ficado dedicado as acrobacias de alcova. Mas percebeu, ao som de Better Man, Paulo, observando tudo. Paulo estava semidespido, só usava cueca, olhava tudo sorrateiramente. Seus olhos centilhavam um misto de desejo e satisfação. Alfredo, sem que Natasha percebesse, a afastou para que ela não pudesse observar Paulo e nada mais fez, além do que já fazia: preencher os espaços que Natasha lhe oferecia.

Na manhã seguinte, os três tomaram café juntos. Entre gargalhadas e olhares, Paulo não tirava os olhos de Natasha e da forma como ela bebia o iogurte. Alfredo só sorria solidariamente...

domingo, 9 de maio de 2010

O GARFO DE PRATA

Marcos Mota era o típico acadêmico brasileiro. Dedicado, cheio de cultura, mas com pouco dinheiro. Professor da UFCG sua maior satisfação era ministrar palestras pelo Brasil. E, ultimamente, após o seu pós-doutoramento estava sendo convidado para eventos internacionais. Infelizmente não participava de todos. Aliás, poucos conseguiam ir devido a falta de recursos da universidade. Mas apesar dos pesares, lá estava Marcos, em Paris, França! Que maravilha! Sua ansiedade era tanta que quando caminhou pela Champs-Élysées foi invadido por uma sensação indescritível de realização. Além de toda a magia da terra de Napoleão, Rousseau, e Sartre, era sua primeira publicação de trabalho na França. Quem haveria de ficar ileso a tanta novidade?

O congresso era uma beleza. Luxo, pompa, tradição e elegância marcavam o evento. A apresentação de Marcos foi muito aplaudida, só se arrependeu de nunca ter estudado Francês, mas o Inglês foi amenizado com várias inserções simpáticas de expressões francesas, com o intuito de fazer o metier.

Enfim, chegara a última noite em Paris. Como despedida resolveu jantar num bom restaurante. Foi ao Alain Ducasse, restaurante situado no Plaza Athénée. Lá, pediu um escargot au vin. O recinto possuia uma excelente decoração, todo o local tinha um charme único. Porém, algo chamou a atenção de Marcos como nada antes. Ele estava maravilhado com os talheres. Um prateado inigualável, fantastique! Foi quando decidiu levar uma lembrançinha especial de Paris. Pensou em pegar o garfo e a faca, mas a faca poderia dar problema na alfândega, com toda essa paranóia de terrorismo. Por isso, foi no garfo com força.

Devagarzinho, envolveu o talher escolhido com sua mão esquerda e o guardou no bolso. Este ato durou um único segundo, mas em sua mente foi planejado nos mínimos detalhes. Ao terminar a refeição, solicitou a conta, nem olhou seu valor, não importava. Seu objetivo era outro: um pedaço de Paris. Quando o garçom retornou com o seu cartão de crédito, Marcos agradeceu, guardou o cartão, e levantou. Cada passo até a porta custava-lhe um esforço colossal. E numa progressão geométrica a culpa ia tomando conta de sua consciência. Rapidamente mentalizou uma manchete na Folha ou no Estadão “Paraibano preso por roubo na França!”. No Correio da Paraíba e no Jornal da Paraíba seria capa, sem a mais mínima dúvida. Suava frio, latejava sua pulsação sangüínea. Neste instante, foi tocado no ombro... Segurou um grito denunciador, mas um tremelique foi inevitável. Era um garçom lhe avisando que a porta que estava prestes a ingressar era da cozinha e não a da saída. Marcos, agradeceu, com um trêmulo «Merci!» Virou-se e caminhou na outra direção.

Contudo o medo aguçara sua visão periférica e percebera o garçom que acabara de alertá-lo, estava conversando com um segurança. O frio correu-lhe pela espinha imediatamente. Estava perdido. Sem hesitar ingressou no banheiro. Numa pane orgânica, seu intestino lhe traiu de forma impiedosa. Exausto, e culpado resolveu encarar a sorte. Devolver o talher seria um ato covarde, e Marcos era um homem de fibra. Respirou fundo, saiu do banheiro em marcha. Imaginou como fundo musical o hino francês, La Marseillaise. Perto da saída encarou o recepcionista do restaurante, mergulhou, por seus olhos, n`alma do indivíduo, este prontamente abriu a porta por onde Marcos atravessou triunfante.

Ao chegar no hotel, estava embevecido pela sua coragem. Retirou o magnífico troféu do bolso. Passou a admirá-lo, lentamente, prazerosamente. Quando, então, uma pequena inscrição no talher retirou-lhe a glória. Lá estava, não devia, mas estava: “Made in Brazil”. Marcos roubara sua pátria.

domingo, 2 de maio de 2010

A CURANDEIRA

Mônica Barros era do tipo “mulher que pode”. Tinha status e independência financeira e se orgulhava disso. Na verdade, desde a escola ela era admirada pelo desempenho e postura madura que patrocinava. Seu codinome entre as coleguinhas era «N & N», pois conseguia conciliar notas & namoros. Quando Mônica foi aprovada no vestibular, para o curso de medicina da UFPB, tratou de acabar o namoro do momento, pois, naquele instante, entendia ter a obrigação de estudar de “verdade”.

Na universidade, ela se destacou pela dedicação às disciplinas o que ecoou numa admiração geral de todos os alunos, professores e funcionários, além de resultar numa excelente média geral. De fato, Mônica detinha a maior média de sua classe. Ao final do curso, fora eleita oradora de sua turma e ganhou uma medalha de honra ao mérito do Centro de Ciências da Saúde. Mal se formara médica já fora aprovada no Programa de Saúde da Família (PSF), que conciliou enquanto pôde com a residência em dermatologia. Foram anos de muito trabalho, muito aprendizado e poucos namoros, na verdade, nenhum que se possa creditar como sério.

Enfim, os anos de cumulação do PSF e plantões, em hospitais privados e públicos, possibilitaram reservas econômicas, que unidas a algum capital paterno realizaram o sonho de sua própria clínica de dermatologia. Mônica fora um caso típico de sucesso fruto de competência e sagacidade. Em sua mente, o sucesso era uma questão de tempo e vinha com absoluto merecimento.

Aos 35 anos estava no auge profissional. Clínica estabilizada, pacientes numerosos e satisfeitos com o atendimento e atenção que Mônica os oferecia. Em verdade, destacava-se o alto grau de informatização de sua clínica e os recursos humanos de alta capacitação. Tudo, obviamente, sob a tutela da médica chefe e, também, diretora geral: Mônica Barros.

Justamente, na época que atingira o ápice profissional, inclusive com o seu doutoramento acadêmico pela USP, algo parecia faltar-lhe. Uma náusea tomava conta de sua alma. De alguma maneira, sua existência estava questionada. A dúvida nunca tinha feito parte de sua vida, mas parecia se alojar velozmente em sua vida.

Nada mais havia o que galgar na medicina. Seu mundo passara a ser deforme e volátil, não mais tinha a firmeza de ações como outrora. Toda esta ebulição questionadora de sua vida trouxe-lhe um sentimento de inutilidade, de infertilidade, e esterilidade. Dentro de sua racionalidade Mônica diagnosticou o problema como “desejo inconsciente de maternidade”. Ocorre que, logo, tal desejo inconsciente transformou-se em consciência. Neste período (trinta e oito anos e solteira) constatou que sua vida afetiva fora nula, ou melhor, anulada. Resumia-se a casos esporádicos e de pouca durabilidade. Lembrou-se de Paulo talvez o mais sério envolvimento que se permitiu. Mas concluiu que tudo que construíram juntos foram alguns momentos de agasalho sobre a fria maca hospitalar em plantões entediantes. Paulo passou, estava até casado e, já fazia tempo. A vida passara e Mônica ocupada ou concentrada demais não percebera.

À busca da maternidade, então, ela se entregou. Seria a cura da sua patologia espiritual. “Havia tempo”, pensava. Ocorre que esta ânsia de maternidade afastava os homens que se envolvia. A cronologia natural dos relacionamentos não mais lhe apetecia. Não podia se dar ao luxo de uma história completa de amor, com início, meio e fim. Em sua convicção, só o meio para o fim interessava.

Sem poder mais esperar pelo acaso, ou qualquer outro curso natural dos acontecimentos, restou para Mônica a inseminação artificial. Foi justamente deitada na maca da clínica de inseminação que aceitou os fatos. Como uma curandeira, aprendeu todos os elixires contra os males físicos, os ensinamentos que sua cultura propiciava. Como uma curandeira, teve fé em tudo o que fez. Como uma curandeira, dedicou-se à tribo e esqueceu-se de si. Curou muitos dos perigos da vida, e, naquele instante, durante a cópula esterilizada, precisa e autômata, pôde diagnosticar que viveu doente sem amor.
 
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