quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A VISITA

Noite de quarta-feira. “Dia de jogo!” - pensei. Mas uma tosse interrompeu meus pensamentos e me relembrou de meu estado patológico. O corpo moído e quente denunciava as mais de vinte e quatro horas de febre. Muita febre. O pior é que em meus aposentos não havia uma mísera televisão. Graças à bondade e literal fraternidade de meu irmão, que tinha me retirado esse essencial equipamento. Na verdade, lamentava não ter ido ao médico... Mais um dia sem tempo... Sem tempo para mim... Tinha vendido meu tempo e percebi o quão onerosa esta negociação poderia ser.

Sem opções, resolvi entregar-me à febre e às dores. Envolto nas cobertas, procurei por um bom tempo o sono. Tudo em vão. Achei a insônia. Coincidentemente, o clima da noite mudava. De uma noite de calmaria, passava-se a tempestade. Os ventos denunciavam o prenúncio da chuva. E como choveu! Nossa! Um verdadeiro aguaceiro. Não lembro por quanto tempo, mas a noite pareceu uma eternidade. Muito vento e muita chuva. A maré alta orquestrava uma sinfonia de ondas oprimidas e opressoras, que reivindicavam respeito ao quebrar na praia. Cheguei a estranhar aquela ressaca imprevista. Mas a noite não me marcaria pelas ondas, ou pela douta chuva. O cenário natural ficaria em segundo plano em minhas memórias. Pois, foi nesta noite que o tempo parou para mim. Verdadeiramente, o tempo hesitou prosseguir quando ela chegou.

A dinâmica da vida optou por parar também. Lembro apenas ter percebido o silêncio, mas o estado febril me impedia de levantar e averiguar suas causas. Foi então que senti a sua companhia. Já não estava só no meu quarto... É difícil explicar... Sua forma humana não me deixa confortável ao ponto de dizer que estava lá com alguém. Ela se parece muito mais com algo que com alguém. Verdade seja dita, recebi a visita da Morte, mas não lembro o seu rosto. Lembro apenas da sensação de sua proximidade. Isto não se esquece. Você já morreu por alguns segundos? Talvez um dia você identifique a sensação que relato. Ela é a essência da falta, o excesso do nada: o fim.

Ela chegou deixou algo escorado, tipo uma bengala, na parede, e sentou-se na beira de minha cama. Com uma voz serena e calma perguntou-me:
- Está pronto?
Respondi – confesso ainda desnorteado:
- Pronto?! Para quê? Quem é você?
- Ora, não me diga que você não percebe o que está se passando? – retrucou minha ilustre visitante.
- Bem – respirei fundo, controlei os nervos e racionalizei o contexto – Posso supor, mas prefiro a objetividade da resposta pelo seu próprio portador.
- Vocês me chamam de “morte”. Eu prefiro me entender como um “Guia”.
- Quer dizer que estou morrendo? Por uma gripe? – explodi - Que merda é essa?!
- Calma Doutor! Gripe mata muita gente, não há nenhum demérito em morrer assim...
- É mesmo?! Você morreu de que?- Rebati
- Bem... eu nunca morri... eu...
- Fácil entender... é um consultor... – confesso que até ri nesta hora - Nunca passou pelo problema, mas entende tudo que se passa.
- Pode ser. Mas... Isso não muda nada... Siga-me, por favor. - Retrucou a Morte um tanto quanto sisuda.
- Estou doente, colega. – respondi apavorado – não posso sair andando pela madrugada com os amigos. – Confesso que, a esta altura, era a definição do desespero.
- Gosto de seu humor. No entanto, você virá cedo ou tarde. – disse ela.
- Pois será tarde. – a esta altura não estava nervoso, mas uma sensação de necessidade aguçava meu senso de sobrevivência - Não há lógica em minha ida assim. Minha família está longe, coisas demais para acabar, coisas demais para iniciar... Não é hora mesmo.
- Advogados sempre presunçosos! – e num é que a Morte deu uma boa risada.
- A questão num é essa. Apenas questiono a oportunidade, deve haver um precedente. Alguém que você “guiou” na hora errada. Não há? - Desafiei
- Não lembro. – Disse ela hesitante, e continuou: - São tantos. De fato talvez uma vez... Talvez... Não. Não! Nenhum engano.
- Mentira! Difícil dialogar com quem falta a verdade! – Repliquei.
- Alto lá Senhor! Respeite-me! Vamos agora e pronto! – Falou firme, segurando-me pelo braço.
Nesse momento, meu corpo literalmente gelou, não sentia mais qualquer sinal vital de minha parte. Em desespero juntei, quem sabe, meu último sopro de vida e afirmei com a voz trêmula e fraca:
- Euu pó-posso provar.
A Morte me soltou e indagou:
- Mas que sujeitinho metido! Pode provar o que?
Foi quando afirmei, já mais firme, com os sinais vitais perceptíveis:
- Que você já se enganou.
Então veio a proposta da Morte:
- Vamos lá! Dê-me um só exemplo de engano de minha parte, que deixo você aqui por enquanto. Ou seja, afinal você num é imortal, então mais cedo ou mais tarde eu volto, mas fico aguardando um novo mandado.
Como falei anteriormente, não sei quanto tempo pensei, apenas não conseguia encontrar nenhum caso de engano da morte, de repente pronunciei desesperado:
- Jesus!!!
Foi quando a Morte esbravejou:
- Ah, não!!! Você também!
Aproveitei o momento de vulnerabilidade que a Dona Morte deixara transparecer e argumentei:
- De fato! Está lá no Novo Testamento, V. Exa. bem que chamou Jesus, mas em 72 horas lá estava ele de volta. É um precedente! Jurisprudência divina e do mais Douto gabarito.
- Num é bem assim - retrucou a morte – Jesus tinha que ressuscitar, fazia parte do combinado. Ademais, ele é Deus e pode tudo!
- Deus-homem! Portanto um homem. Por conseguinte é “alguém”.
- Nada disso, vamos lá – o falar da Dona Morte, mais uma vez fazia meu corpo se tornar imperceptível.
- Calma, calma! Trato é trato! Pacta sunt servanda! Eu falei “Alguém que você ‘guiou’ na hora errada. Não há?”. E você me desafiou a provar. Provei, pois se Jesus é Deus, é também um Deus encarnado, um homem também. É o “Alguém” mais importante da história da humanidade.
- Ai, Deus! – Disse a Morte e continuou:
- Você num entende, eu não errei com Jesus, pois eu não tinha guiá-Lo, pois Ele sabia o caminho.
- Aí não é justo! Como posso ser condenado por algo que não entendo!?? – Arrisquei essa já no desespero.
- Ah, não! Algo que não suporto é ser acusada de injusta. Deixa-me consultar o Salvador aqui.

Um minuto depois...

- Sei não! Às vezes nem eu entendo! Olha só Doutor... Tua gripe foi curada. Passe bem, por enquanto... – E assim a Dona Morte se foi.

E eu que criticava a frase, tantas vezes, aposta nos pára-brisas alheios: “Só Jesus Salva”. Bem a história Dele me salvou, ao menos, temporariamente, posso continuar trilhando meu caminho.
 
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