segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O SEGREDO

Ulisses era um pacato homem de quase meia-idade comum. Tinha uma boa casa, uma boa família, uma boa esposa. Sua vida parecia seguir o curso natural das coisas. Tudo ia bem como um roteiro metódico. Era comerciante, empresário do ramo de materiais de construções e não podia reclamar das coisas, pois o programa federal “Minha Casa, Minha Vida” tinha alavancado o setor da construção civil. Tudo em sua vida parecia perfeito.
E lá estava ele, em plena quinta-feira, 15:00 horas, indo ao banco, quando sua mulher, Daniele, liga:
- Lilinho, tá lembrado, né? Hoje tenho plantão em Monteiro. Amanhã é em São José do Egito. Tou pegando a estrada, só volto domingo, viu meu bem. Beijo, se cuide.
Ulisses, mal respondeu, a ligação se perdeu em seus pensamentos. Não entendia porque sua mulher não diminuía o ritmo. Os filhos já estavam todos na faculdade. Tinham conquistado mais que o básico. Mas ela se entregava a medicina como meio de obter recursos para suas extravagâncias consumistas. Quantos sábados mais haveria de passar sozinho? A essa altura do campeonato, seus filhos, todos morando em outras cidades, não podiam mais suprir a ausência de Daniele. Ele estava sem companhia em mais um final de semana de Campina Grande.
Naquele instante, como um lampejo, uma faixa de rua, afixada entre dois postes, traria o seguinte convite:
“FORTAL!!! EXCURSÃO VIP -  ÚLTIMAS VAGAS! LIGUE 3333-3333! ORG. GIGATUR”
Numa espécie de raciocínio automático pegou o celular e ligou. Em minutos, chegou à agência e garantiu uma vaga na excursão. Ás 19:00 horas, lá estava Ulisses sentado no último assento, com dois litros de uísque na bagagem de mão, além de água de côco e muito gelo. Uma tsunami de liberdade invadira sua vida. Por um segundo, assim que o ônibus partiu, pensou na loucura que estava fazendo, e quase desistiu. Meu Deus! Sou um coroa entre garotos desconhecidos!
Antes da excursão passar por Patos, Ulisses já estava embriagado. Em Caicó já descia até o chão no meio da meninada que se divertia com o “Tiozão Crazy”. Em Mossoró, Ulisses já tinha se tornado o líder do grupo e era quem, após algumas aulas e demonstrações dos companheiros, puxava as coreografias.
Em Fortaleza, na sexta saiu no Asa de Águia, para ele “suvaco de pardal”. Voltou para o hotel apenas no sábado, depois que acordou num hospital após tomar glicose. No sábado foi no Jamil, para ele “Já milhares”, pois já tinha tomado quantitativamente por aí. Apesar de embriagar-se novamente, membros da excursão conseguiram lhe resgatar dos braços de um travesti que ele chamava de “Deusa Grega”. No domingo, a gozação da gurizada era tanta que ele evitou o grupo. Tinha que voltar para Campina Grande no primeiro voo. A excursão iria sair de 22;00 horas e não dava para ele. Chegou a comprar a passagem. Mas resolveu beber um pouco no hotel e, quando deu por si, já estava no Chiclete com Banana, única banda que ele conhecia antes. Pensava, apenas naquela santa expressão solucionadora dos problemas impossíveis:
- PHODA-SE!!! DEIXA O CARA SER FELIZ!!!
Esbaldou-se na avenida.  Não lembra de quase nada, o pobre Ulisses. Mas algo dentro de si, até hoje, diz-lhe que valeu. Então, diga que valeu... Pensava nosso protagonista.
Bem mais o paraíso é sempre transitório e a felicidade é efêmera. Quando chegou no hotel, por volta da meia-noite, tinha perdido a excursão. Pior, tinha perdido a carteira, estava sem dinheiro. Desesperou-se e chorou copiosamente no saguão do hotel, provocando uma daquelas cenas que apenas os ébrios são capazes. Conseguiu a compaixão alheia e assim obteve uma carona com outro hóspede até o aeroporto. Lá, com muitas ligações, um amigo contatou a empresa aérea e remarcou a passagem.
Às 15:30 da segunda-feira, Ulisses pisava na terra mais desejada do mundo. Quando chegou em casa, suas roupas e algumas outras coisas já estavam no terraço. Tudo empacotado cuidadosamente e vigiado por um bilhete com os seguintes dizeres:
- Vá embora seu ingrato!
Sentado no batente do terraço de sua casa esperou Daniele. Quando a noite principiava, eis que aparece a sua companheira fiel. A aparência frágil de anos de convivência sofrera uma mutação mitológica. Um animal raivoso esbravejava em sua frente e tentava devorá-lo. Daniele bateu, cuspiu, xingou, fez tudo que queria e Ulisses nem sequer esboçou qualquer reação. Quando Daniele cansou de puni-lo, Ulisses levantou a cabeça e disse:
- Você tá certa, meu amor. Eu não presto. Você tem toda razão. Sou um crápula, ouvistes? Um crápula!
Aquela confissão comoveu Daniele, quando seu olhar baixou a guarda, Ulisses afirmou:
- Viveste mais de quinze anos com um homem e não o conhecestes.
Daniele intrigada, disse já curiosa:
- Como assim, seu cachorro!?
Ulisses então sentenciou:
- Deus escreve certo por linhas tortas. Prefiro você com raiva de mim, que com vergonha de mim. Eu não mereço você.
Daniele, então muito curiosa, indagou:
- Como assim, Ulisses? Por que vergonha? Que segredo todo é esse!?
Ulisses, virou-se, pegou uma mala e caminhava até o portão, quando foi interrompido por Daniele.   Foi então que disparou:
- Tenho um segredo mesmo, meu bem! E não me orgulho! – Ele chorava intensamente – Sou viciado! Viciado em maconha, meu amor! Há anos que não fumava. Tive uma recaída. Você não sabe o que é ser dependente! É ser escravo! É ter um senhor, mesmo que mudo, cruel e que lhe suga tudo. E, agora, sugou-me a pessoa mais importante de minha vida.
 
Ulisses não conseguiu dizer mais nada. Daniele tapou-lhe a boca com um beijo. O colocou para dentro de casa. Fez-lhe uma sopa. Colocou-lhe na cama e se amaram como há muito não faziam. E o segredo foi mantido para todo o sempre entre eles.
 
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