sexta-feira, 23 de março de 2012

NADA MAIS PARA SEMPRE

Foi terminando o ontem e eu, lentamente, fui me distanciando de minha sombra, como se nenhum mínimo controle eu mesmo exercesse sobre mim. É que os últimos momentos não me foram felizes. Restou-me a mim totalmente dilacerado e rendido diante da natureza angustiante do ego. Chovia, muito e um bocado mais, a cada relance do mundo espiado por minha janela. Inclusive, o que parece permanecer é o observar. Não sou mais observado. Ninguém me percebe. No entanto, eu nunca antes percebi tanto. Em verdade, acho que percebo tudo, agora.

De longe sentia o asfalto molhado, ele que me mantinha frio. Sim! Ainda estou gelado! E quem está quente neste inferno gélido de toscas compreensões e nenhuma tolerância?

Somos todos tão desiguais e insuportáveis. As minorias se agregam e se multiplicam, no fim somos todos minoritários. O coletivo é vazio e caótico como o desespero. A alegria findou-se por ser cristal raro, digitalizada e exposta nos murais do Facebook, em uma mera e insensata tentativa de prolongamento. Esquecem-se do tempo. Ele tudo corrói. Não restará pedra sobre pedra, byte sobre byte.

Quando eu me pergunto por que disse isso? E, quando disse, de que adiantou?

Num tempo tão, indeterminadamente, curto e num espaço tão, estreitamente, infinito, tem sido um prazer intenso compartilhar comigo mesmo, e comigo apenas, as amarguras dessas dimensões. Ninguém , nem mesmo você, chuva companheira que me escuta com sua paciência duvidosa. Somos apenas massa. Temos pouca força e quase nenhuma aceleração. Somos impotentes. E onde devo aderir? Não parece haver espaço no desfile de corpos perfeitos de estereótipos inexequíveis e patológicos. Esta inadequação, antes fosse pessoal, mas assola o meu tempo. Criou-se um mundo, onde o tempo já não é suficiente.

Certamente, não há certeza. Somos navegantes ou navegados? Seremos adubo ou transcenderemos? Perguntas demais para pouco saber. Todas as tentativas, até hoje, não passaram disso apenas: uma tentativa. E somos todos tentados a tentar. A cada dia, eu tentei. Mas minha tentativa foi tão ordinária quanto as mais brilhantes que me precederam. Afinal, não somos todos os mesmos? Não repetimos as fórmulas que nos ensinam? Ou não nos foi ensinada, tantas vezes, a felicidade?

Os felizes, os mais felizes, sabem pouco.  Dessa forma, sublimam a existência que se apresenta como um processo de desconstrução da felicidade inata. Toda alegria, depois da realidade, é hipocrisia. No máximo, um ensaio de retorno. Nada mais para sempre.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O SEGREDO

Ulisses era um pacato homem de quase meia-idade comum. Tinha uma boa casa, uma boa família, uma boa esposa. Sua vida parecia seguir o curso natural das coisas. Tudo ia bem como um roteiro metódico. Era comerciante, empresário do ramo de materiais de construções e não podia reclamar das coisas, pois o programa federal “Minha Casa, Minha Vida” tinha alavancado o setor da construção civil. Tudo em sua vida parecia perfeito.
E lá estava ele, em plena quinta-feira, 15:00 horas, indo ao banco, quando sua mulher, Daniele, liga:
- Lilinho, tá lembrado, né? Hoje tenho plantão em Monteiro. Amanhã é em São José do Egito. Tou pegando a estrada, só volto domingo, viu meu bem. Beijo, se cuide.
Ulisses, mal respondeu, a ligação se perdeu em seus pensamentos. Não entendia porque sua mulher não diminuía o ritmo. Os filhos já estavam todos na faculdade. Tinham conquistado mais que o básico. Mas ela se entregava a medicina como meio de obter recursos para suas extravagâncias consumistas. Quantos sábados mais haveria de passar sozinho? A essa altura do campeonato, seus filhos, todos morando em outras cidades, não podiam mais suprir a ausência de Daniele. Ele estava sem companhia em mais um final de semana de Campina Grande.
Naquele instante, como um lampejo, uma faixa de rua, afixada entre dois postes, traria o seguinte convite:
“FORTAL!!! EXCURSÃO VIP -  ÚLTIMAS VAGAS! LIGUE 3333-3333! ORG. GIGATUR”
Numa espécie de raciocínio automático pegou o celular e ligou. Em minutos, chegou à agência e garantiu uma vaga na excursão. Ás 19:00 horas, lá estava Ulisses sentado no último assento, com dois litros de uísque na bagagem de mão, além de água de côco e muito gelo. Uma tsunami de liberdade invadira sua vida. Por um segundo, assim que o ônibus partiu, pensou na loucura que estava fazendo, e quase desistiu. Meu Deus! Sou um coroa entre garotos desconhecidos!
Antes da excursão passar por Patos, Ulisses já estava embriagado. Em Caicó já descia até o chão no meio da meninada que se divertia com o “Tiozão Crazy”. Em Mossoró, Ulisses já tinha se tornado o líder do grupo e era quem, após algumas aulas e demonstrações dos companheiros, puxava as coreografias.
Em Fortaleza, na sexta saiu no Asa de Águia, para ele “suvaco de pardal”. Voltou para o hotel apenas no sábado, depois que acordou num hospital após tomar glicose. No sábado foi no Jamil, para ele “Já milhares”, pois já tinha tomado quantitativamente por aí. Apesar de embriagar-se novamente, membros da excursão conseguiram lhe resgatar dos braços de um travesti que ele chamava de “Deusa Grega”. No domingo, a gozação da gurizada era tanta que ele evitou o grupo. Tinha que voltar para Campina Grande no primeiro voo. A excursão iria sair de 22;00 horas e não dava para ele. Chegou a comprar a passagem. Mas resolveu beber um pouco no hotel e, quando deu por si, já estava no Chiclete com Banana, única banda que ele conhecia antes. Pensava, apenas naquela santa expressão solucionadora dos problemas impossíveis:
- PHODA-SE!!! DEIXA O CARA SER FELIZ!!!
Esbaldou-se na avenida.  Não lembra de quase nada, o pobre Ulisses. Mas algo dentro de si, até hoje, diz-lhe que valeu. Então, diga que valeu... Pensava nosso protagonista.
Bem mais o paraíso é sempre transitório e a felicidade é efêmera. Quando chegou no hotel, por volta da meia-noite, tinha perdido a excursão. Pior, tinha perdido a carteira, estava sem dinheiro. Desesperou-se e chorou copiosamente no saguão do hotel, provocando uma daquelas cenas que apenas os ébrios são capazes. Conseguiu a compaixão alheia e assim obteve uma carona com outro hóspede até o aeroporto. Lá, com muitas ligações, um amigo contatou a empresa aérea e remarcou a passagem.
Às 15:30 da segunda-feira, Ulisses pisava na terra mais desejada do mundo. Quando chegou em casa, suas roupas e algumas outras coisas já estavam no terraço. Tudo empacotado cuidadosamente e vigiado por um bilhete com os seguintes dizeres:
- Vá embora seu ingrato!
Sentado no batente do terraço de sua casa esperou Daniele. Quando a noite principiava, eis que aparece a sua companheira fiel. A aparência frágil de anos de convivência sofrera uma mutação mitológica. Um animal raivoso esbravejava em sua frente e tentava devorá-lo. Daniele bateu, cuspiu, xingou, fez tudo que queria e Ulisses nem sequer esboçou qualquer reação. Quando Daniele cansou de puni-lo, Ulisses levantou a cabeça e disse:
- Você tá certa, meu amor. Eu não presto. Você tem toda razão. Sou um crápula, ouvistes? Um crápula!
Aquela confissão comoveu Daniele, quando seu olhar baixou a guarda, Ulisses afirmou:
- Viveste mais de quinze anos com um homem e não o conhecestes.
Daniele intrigada, disse já curiosa:
- Como assim, seu cachorro!?
Ulisses então sentenciou:
- Deus escreve certo por linhas tortas. Prefiro você com raiva de mim, que com vergonha de mim. Eu não mereço você.
Daniele, então muito curiosa, indagou:
- Como assim, Ulisses? Por que vergonha? Que segredo todo é esse!?
Ulisses, virou-se, pegou uma mala e caminhava até o portão, quando foi interrompido por Daniele.   Foi então que disparou:
- Tenho um segredo mesmo, meu bem! E não me orgulho! – Ele chorava intensamente – Sou viciado! Viciado em maconha, meu amor! Há anos que não fumava. Tive uma recaída. Você não sabe o que é ser dependente! É ser escravo! É ter um senhor, mesmo que mudo, cruel e que lhe suga tudo. E, agora, sugou-me a pessoa mais importante de minha vida.
 
Ulisses não conseguiu dizer mais nada. Daniele tapou-lhe a boca com um beijo. O colocou para dentro de casa. Fez-lhe uma sopa. Colocou-lhe na cama e se amaram como há muito não faziam. E o segredo foi mantido para todo o sempre entre eles.

domingo, 30 de janeiro de 2011

O CAOS

Quando ele acordou, pulou da cama como se ele estivesse ardendo em chamas. Não tinha a menor noção de onde estava. Também não reconhecia a mulher despida que parecia dormir no carpete do quarto. Sentiu um nojo violento da companheira de alcova, por muito pouco, não a esbofeteou naquele mesmo instante. Porém, cinco segundos de consciência foram suficientes para que todo seu asco se voltasse para si próprio. Afinal, pensou, «Eu que me meti aqui!».

Tentou acordar a misteriosa mulher postada com as pernas cruzadas e coberta de pétalas de rosas, mas logo percebeu que ela estava apagada. Como diabos ela ficou assim?! Observou a seringa ao lado da cama. Ela estava drogada e por isso não reagia. Viu que ele também estava picado na veia braquial. Encontrou uma caixa de medicamento. Era de «liprecia». Resolveu guardá-la, podia ajudar em algo. Preocupado, só pensava em sair dali.


Procurou suas roupas, mas só encontrou a cueca e as calças. Estava descalço, sem camisa e sem carteira. Olhou pela janela do quarto e viu que estava em um apartamento bem alto. Pensou para onde podia ir, mas sentiu um arrepio frio na espinha, quando percebeu que não lembrava o endereço de casa. Não fazia ideia onde morava, apenas lembrava que era perto da praia, talvez bessa ou intermares. Independentemente, tinha que sair rápido, não queria ser responsável pela morte ou overdose daquela mulher.


Abriu a porta do quarto cautelosamente, sentiu o ardor do calor dos trópicos. Devia ser perto do meio-dia ou talvez já estivesse no meio da tarde. O apartamento estava silencioso, mas a sala estava uma zorra. Garrafas, copos, resto de petiscos, as luzes ainda estavam ligadas. Estiveram muito mais pessoas, aqui, ontem, pensou. Viu algumas fotos na parede da sala, era da mulher que estava no quarto. Ela era jovem e bem atraente. Para sua surpresa, ficou claro que ela era casada e tinha um filho. Pelas imagens, qualquer um diria que eram muito felizes. A essa altura, seu coração parecia querer saltar pela boca. Devia ser gente poderosa, o apartamento era enorme e muito bem decorado, tudo com cara de excesso e suntuosidade. Teve a ideia de voltar ao quarto, no closet, encontrou roupas masculinas. O cara parecia maior, mas as peças serviram. Pegou uma camisa e uma sandália. Só imaginava o marido o flagrando com suas roupas e mulher. Tentou, novamente, achar sua carteira, mas nada encontrou. Voltou a examinar a mulher, ela era muito bonita e continuava imóvel em meio as pétalas, mas ainda parecia respirar.

Abriu a porta do apartamento, pegou o elevador, e com a melhor cara-de-pau que conseguiu protagonizar passou pela recepção. O porteiro o cumprimentou timidamente com a cabeça, ele retribuiu meio sem jeito. Não queria poder ser reconhecido. Logo, ele alcançou a rua. Sabia que tinha um carro, mas não lembrava qual. Ademais, sem carteira e chaves, concluiu que ou não chegara de carro ou perdera as chaves. Além disso, seu carro podia ser qualquer um daqueles que estavam na frente do luxuoso prédio. Resolveu ir caminhando. Logo, percebeu que não sabia para onde ia. Perguntou a uma Senhora:

- Para que lado fica o mar? O Bessa?

A senhora respondeu que ele já estava no Bessa, um tanto assustada com a aparência confusa e desnorteada daquele jovem. E, em seguida, apontou qual a direção do mar. Assim, ele seguiu agustiado. Não muito longe, com poucos minutos de caminhada, ele chegou na Avenida Governador Argemiro de Figueiredo. Observou seus bares, lembrou que já tinha frequentado todos, mas não conseguia lembrar com quem ou as noites que ali passara. Entrou em desespero. Lembrava que a polícia tinha um número, mas não sabia qual. Logo, desistiu das vias legais. O que iria dizer? Que acordou drogado ao lado de uma mulher nua e, talvez, a essa hora, morta?


Sentou a beira-mar e refletiu por horas. De repente, as lembranças foram retornando. O medo extremo e a sensação de abandono foram se esvaindo. Em seu lugar, a perplexidade tomava conta de sua mente. Pegou a embalagem de «liprecia»* e arremessou com ira. Continuava não lembrando nada da noite anterior. Mas relembrou quem era a mulher, como podia ter chegado lá e, então, chorou copiosamente. A culpa era ensandecedora. Entre soluços, desesperado correu para buscar ajuda! Queria que sua irmã ainda tivesse uma chance, pois não entrevia mais salvação para si no caos.

*http://www.cocadaboa.com/archives/003760.php

domingo, 5 de dezembro de 2010

O SALTO ALTO

Acordou com uma taquicardia abrupta, daquelas que assustam o coitado por assombrar a alma com as dúvidas mais impiedosas da existência. Rapidamente, com a mão esquerda, examinou a cama, mas não havia nada. Pior, não havia ninguém. Ela não estava mais lá. Tentava entender como tudo aconteceu. Não sabia. Não conseguia aceitar a presença tão marcante da ausência dela. Ela era linda. Seu corpo um templo de uma luxúria sagrada um caminho de rendenção e rendição sem volta. Justamente, em suas trilhas ele se perdeu. Perdera a razão, os bens, a cabeça e o sono.

Na companhia de um silêncio estérico, os ponteiros teimavam em retardar os seus passos. Incorformado e nervoso, há dias que, nessas horas, convocava o seu amigo escocês: «Venha, Johnnie Walker!» As primeiras doses eram reflexivas. Da quinta em diante, seguia um desabafo. Johnnie era um ótimo ouvinte. Não interrompia. Entretanto, até Johnnie tinha um limite. E quando ele menos esperava, o companheiro e ouvinte fiel já não estava mais lá.

Trôpego, ziguezagueava inquieto. Chorava e sorria com intensidade. Abria o computador e via as fotos, uma a uma. Apagava algumas, depois se arrependia amargamente. O dias e noites, assim, foram passando. As garrafas vazias iam se acumulando em uma estante. Devorava os bilhetes guardados, as cartas arquivadas até os e-mails armazenados. Mas, ao fim, sabia que ela não mais voltaria. Não era possível.
Até que, naquela madrugada, encontrou um sapato dela. Era um belo sapato vermelho de veludo. «Uma peça linda para um pé lindo.», pensava. Lembrou de como ela adorava usar vermelho. Adorava as rosas. Adorava os jardins. Cultuando aquele salto alto, escreveu em um guardanapo:

«Ao longe avisto sua chegada
A alegria percorre meu corpo
Esconderijo não há no entorno
A rendição é então anunciada

Cada movimento, cada passo
Exemplo vivo do descompasso
No fluxo das minhas artérias
Que clamam na mais vil miséria

A agora sanguínea correnteza
Revolta constante, reluntância
Numa eterna e ferina ânsia
De reconquistar tua beleza»


Em prantos, subiu as escadas. No último pavimento, caminhou pela cobertura alucinado. Seus soluços eram engasgos. Subiu no parapeito do edifício e olhou o horizonte com a vista turva. Foi, justamente, quando a viu de braços abertos. Linda como nunca. Ela usava o salto alto vermelho. Não titubeou. Pulou. Foi um salto alto como nunca mais daria igual para os braços de sua amada.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

OS PRESENTINHOS

Pedro namorava Marcinha já há muito tempo. O relacionamento de tão estável ficou monótono. A rotina dos pombinhos era tão severa que o tédio reinava no coração da jovem namorada, que sentia falta dos arroubos e suspiros próprios das paixões violentas e carnais. Pedro nem se tocava, mas faltava adrenalina no romance e sobrava a previsibilidade da mesmice de cada dia. Realmente a burocracia entre o casal era de tal forma dominante, que Marcinha era capaz de descrever detalhadamente a sequência de cada encontro futuro, inclusive do sexo. Reclamava a Carla, sua ouvidora mor:

- Primeiro ele me beija assim, depois eu beijo ele assim. Aí, ele me despe assim, eu tiro a blusa dele, etc. Não muda nada, nunca, amiga! Nunca! Eu juro! Pode uma coisa dessas?

A monotonia tornou-se insustentável. Numa certa noite de sexta, após o coito ordinário da semana, no motel mais próximo de casa, Pedro caiu na besteira de perguntar:

- Gostou meu bem? Foi gostoso?

Marcinha foi sincera como não se costuma ser e respondeu:

- Foi não. Na verdade Pedro, foi uma merda!

Pedro ficou surpreso e envergonhado de si próprio. A pressão de Marcinha sobre ele não foi pouca. Confessou que estava entediada, que Pedro era o culpado, pois não era criativo e fazia do namoro um filme previsível, daqueles tão cheios de clichês que o expectador dorme, inexoravelmente, antes do fim. Pedro se vestiu, pagou a conta e deixou Marcinha em casa sem dizer uma palavra. Foram cinco dias de silêncio. Até que Pedro se encheu de coragem e ligou para sua amada. Pediu uma nova chance. Jurou que iria surpreendê-la. Marcinha cedeu sem muita resistência. Sinceramente, ela estava até empolgada, achava que sua sinceridade extrema talvez acabasse se revelando benéfica, pois teria acordado o pacato Pedro.

Pedro atacou inicialmente com jantares e mimos surpresas. Roupas, também, fizeram parte do repertório inicial. No entanto, em poucos meses já não havia mais um restaurante em João Pessoa que o casal não conhecesse. Os motéis também estavam dominados. Portanto, Marcinha voltou a reclamar.

Em franco desespero, Pedro resolveu ser mais incisivo e contundente. Passou a presentear Marcinha com lingeries. Cada uma mais ousada e sexy que a outra. Marcinha gostou. Depois ele apelou para alguns filmes eróticos. Marcinha adorou. Enfim, resolveu dar à doce menina uns presentinhos especiais: uns brinquedinhos sexuais. Começou com geles estimulantes, depois massageadores clitorianos. Marcinha amou. Depois, partiram para os vibradores. Foram vários e dos mais variados. Experimentaram de tudo que esteve ao alcance. Marcinha conheceu o nirvana. A chegada de Pedro com um novo embrulho nas mãos fazia Marcinha ferver. Um pacotinho que fosse já lhe dava um arrepio. Quando era dos grandes, então, ela ficava maluca. O acúmulo dos presentinhos fez com que ela disponibilizasse um maleta só para abrigar os apetrechos da plena intimidade do casal.

Mas o tempo destrói tudo. Mesmo com todo o aparato sexual que a maleta oferecia, as coisas esfriaram. Assim, o namoro se foi. Dessa vez, foi até Pedro que tomou a iniciativa. No entanto, poucos dias depois, por mais que aceitasse o fim do relacionamento, o pacato garoto não suportava a ideia de Marcinha brincar com os presentinhos na companhia de outros coleguinhas. Pedro respirou fundo e ligou para a ex:

- Marcinha, tudo bem, acabou. Mas quero a maleta! Ouvistes? Quero tudo! Devolves tudo!

Marcinha se recusou a restituir. Primeiro, pois, por mais estranho que pareça, adorava abrir a maleta em sua intimidade e pensar nos momentos que viveu. Segundo, porque, também, não queria pensar na hipótese de Pedro fazer uso deles em outro playground. A negativa causou uma briga sem precedentes entre os dois. O respeito passou longe e a baixaria ascendeu de forma devastadora.

Foi então que Pedro, inescrupulosamente, ameaçou contar tudo a Dona Marta, a mãe de Marcinha. Sem saída, a pobre garota cede perante à chantagem e aceita o encontro para resgate dos regalos da discórdia.

- Poxa, Pedro! És um escroto! Ouvistes!? Tudo certo, devolvo esta maleta desgraçada.

No local designado, em um velho terreno baldio no Bessa, os ex-amantes se encontraram, após meses de intrigas e desentendimentos. Lá, finalmente, transacionaram um acordo. A maleta foi aberta, conferiram cada brinquedinho, um a um. Enfim, a maleta foi fechada. Ato contínuo, Pedro derramou querosene sobre ela e ateou fogo. Enquanto as chamas consumiam o depósito guardião dos presentinhos, Marcinha finalmente suspirava e se inundava novamente de desejo, afogada em tantas lembranças que, agora, literalmente eram apenas cinzas ao vento. Pedro, por sua vez, chorava copiosamente entre soluços.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

O CRAVO E O ROSA

Amadeus Rosa era um cara de pouca sensibilidade. Isso não o fazia propriamente mal-educado, entretanto nem sempre era cortês. Dessa forma, ele era um tanto bruto, por vezes, rude. Sempre de falas curtas e com pouca paciência para as questões fúteis ou triviais da vida, primava pela respostas diretas e pelas perguntas estritamente necessárias. Por toda essa crua objetividade, os amigos o chamavam de Rosa. Afinal, seu sobrenome casava de forma verdadeiramente paradoxal com a delicadeza que lhe faltava. Assim, Amadeus era, floridamente, referido sob a alcunha de «ROSA» ou «O ROSA». E, como bem sabemos, as rosas têm espinhos.

Olívia Blanc era o inverso. Um doce de pessoa. Menina fina, em verdade, era muito bem educada. Sua família era importante, mas economicamente decadente. Mas na corte o que vale é a origem, portanto para uma Blanc a pose era importante. A etiqueta impecável era sua marca. Além disso, era prendada nos afazeres domésticos, dominava a arte da gastronomia, fosse o prato regional, nacional e internacional. Foi justamente numa noite especial, regada por finas iguarias gastronômicas que ela conheceu o Rosa.

Era a festa de uma amiga de Olívia. Um amigo do Rosa o chamou, pois não queria ir sozinho. Rosa relutou, mas foi. Na festa, àquela altura, um tanto entediante, ele encontrou Olívia. De imediato, o tempo parou. Era como se Deus apertasse um «slow motion», no controle remoto da vida. Cada movimento dela era milimetricamente analisado e admirado, seu rosto era de devoção dogmática. Ele parecia inspecionar, um a um, cada centímetro de Olívia, cada poro de sua pele. Rapidamente, Olívia comentou com uma amiga:
- Olha só como aquele cara me olha! O que será que ele quer?
A amiga rindo sussurrou:
- Te comer!
Rosa caminhou em sua direção e se apresentou. A conversa iniciou-se amena, com os «O que» e «Quem» de sempre: O que você faz?, O que você gosta?, Quem você conhece aqui?, etc. No meio do papo, quase do nada, o Rosa falou:
- Princesa, posso te dar um beijo?
Olívia respondeu:
- Tá Louco!? Mal te conheço!
Rosa:
- Nenhuma forma melhor de conhecer há que essa! – e tacou um beijo daqueles.
Olívia de início resistiu, mas foi mais forte do que ela. Não Rosa, o desejo. A insustentável leveza do ser a empurrou para os braços do bruto, demoradamente. Quase perderam o fôlego. Quando, finalmente, ela falou:
- Você é muito atrevido, Amadeus!
Ele:
- Nada disso. Sou homem. Você que tá mal acostumada, andando muito com esses burguesinhos. Ainda não sabe como é um homem de verdade.
Olívia com um ar desafiador, retrucou:
- Ah, é?! Suponha que você deva ser um homem desse espécime genuíno. Uma pena você achar que eu não sei o que é um homem de verdade.
Foi quando o Rosa disse:
- Não sabe mesmo! Mas se quiser saber, estou aqui.
Olívia pareceu se transformar. Puxou o Rosa pela gola da camisa e disse:
- Siga-me se for capaz... de verdade.
Refugiaram-se num pequeno quartinho. Era uma dispensa, cheia de salgadinhos, docinhos, bebidas, enfim, o buffet da festa estava ali. Lá, beijaram-se, abraçaram-se, trocaram carícias intensas. Rosa ainda tentou:
- Você é louca é? Alguém pode chegar! Vamos sair daqui!
Olívia vitoriosa e maliciosamente disse:
- Para onde foi aquele homem de verdade que tava lá fora? Acho que continua por lá. Será que tenho que te abandonar e procurar por ele?
Rosa a agarrou com mais força e a despiu parcialmente. Sem suportar mais o desejo, a fidalga moça cedeu. Apoiada entre as prateleiras se entregou com classe. A mão direita se afundou numa bandeja de pastéis, a esquerda, numa de docinhos. Enquanto sua libido se libertava, Olívia experimentou um dos docinhos. «Uma delícia!», pensou. Assim, entregue ao impulso, ela degustava os docinhos compulsivamente. Eram daqueles que tem um cravo-da-índia fincado no meio do docinho de côco. E a cada movimento brusco do Rosa, Olívia mordia o cravo, enquanto o espinho que lhe alcançava denunciava que estava mais viva do que nunca. Ela consumia o cravo e o Rosa. Olívia, enfim, aceitara que era uma grande pecadora. Gulosa como ela só!

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A VISITA

Noite de quarta-feira. “Dia de jogo!” - pensei. Mas uma tosse interrompeu meus pensamentos e me relembrou de meu estado patológico. O corpo moído e quente denunciava as mais de vinte e quatro horas de febre. Muita febre. O pior é que em meus aposentos não havia uma mísera televisão. Graças à bondade e literal fraternidade de meu irmão, que tinha me retirado esse essencial equipamento. Na verdade, lamentava não ter ido ao médico... Mais um dia sem tempo... Sem tempo para mim... Tinha vendido meu tempo e percebi o quão onerosa esta negociação poderia ser.

Sem opções, resolvi entregar-me à febre e às dores. Envolto nas cobertas, procurei por um bom tempo o sono. Tudo em vão. Achei a insônia. Coincidentemente, o clima da noite mudava. De uma noite de calmaria, passava-se a tempestade. Os ventos denunciavam o prenúncio da chuva. E como choveu! Nossa! Um verdadeiro aguaceiro. Não lembro por quanto tempo, mas a noite pareceu uma eternidade. Muito vento e muita chuva. A maré alta orquestrava uma sinfonia de ondas oprimidas e opressoras, que reivindicavam respeito ao quebrar na praia. Cheguei a estranhar aquela ressaca imprevista. Mas a noite não me marcaria pelas ondas, ou pela douta chuva. O cenário natural ficaria em segundo plano em minhas memórias. Pois, foi nesta noite que o tempo parou para mim. Verdadeiramente, o tempo hesitou prosseguir quando ela chegou.

A dinâmica da vida optou por parar também. Lembro apenas ter percebido o silêncio, mas o estado febril me impedia de levantar e averiguar suas causas. Foi então que senti a sua companhia. Já não estava só no meu quarto... É difícil explicar... Sua forma humana não me deixa confortável ao ponto de dizer que estava lá com alguém. Ela se parece muito mais com algo que com alguém. Verdade seja dita, recebi a visita da Morte, mas não lembro o seu rosto. Lembro apenas da sensação de sua proximidade. Isto não se esquece. Você já morreu por alguns segundos? Talvez um dia você identifique a sensação que relato. Ela é a essência da falta, o excesso do nada: o fim.

Ela chegou deixou algo escorado, tipo uma bengala, na parede, e sentou-se na beira de minha cama. Com uma voz serena e calma perguntou-me:
- Está pronto?
Respondi – confesso ainda desnorteado:
- Pronto?! Para quê? Quem é você?
- Ora, não me diga que você não percebe o que está se passando? – retrucou minha ilustre visitante.
- Bem – respirei fundo, controlei os nervos e racionalizei o contexto – Posso supor, mas prefiro a objetividade da resposta pelo seu próprio portador.
- Vocês me chamam de “morte”. Eu prefiro me entender como um “Guia”.
- Quer dizer que estou morrendo? Por uma gripe? – explodi - Que merda é essa?!
- Calma Doutor! Gripe mata muita gente, não há nenhum demérito em morrer assim...
- É mesmo?! Você morreu de que?- Rebati
- Bem... eu nunca morri... eu...
- Fácil entender... é um consultor... – confesso que até ri nesta hora - Nunca passou pelo problema, mas entende tudo que se passa.
- Pode ser. Mas... Isso não muda nada... Siga-me, por favor. - Retrucou a Morte um tanto quanto sisuda.
- Estou doente, colega. – respondi apavorado – não posso sair andando pela madrugada com os amigos. – Confesso que, a esta altura, era a definição do desespero.
- Gosto de seu humor. No entanto, você virá cedo ou tarde. – disse ela.
- Pois será tarde. – a esta altura não estava nervoso, mas uma sensação de necessidade aguçava meu senso de sobrevivência - Não há lógica em minha ida assim. Minha família está longe, coisas demais para acabar, coisas demais para iniciar... Não é hora mesmo.
- Advogados sempre presunçosos! – e num é que a Morte deu uma boa risada.
- A questão num é essa. Apenas questiono a oportunidade, deve haver um precedente. Alguém que você “guiou” na hora errada. Não há? - Desafiei
- Não lembro. – Disse ela hesitante, e continuou: - São tantos. De fato talvez uma vez... Talvez... Não. Não! Nenhum engano.
- Mentira! Difícil dialogar com quem falta a verdade! – Repliquei.
- Alto lá Senhor! Respeite-me! Vamos agora e pronto! – Falou firme, segurando-me pelo braço.
Nesse momento, meu corpo literalmente gelou, não sentia mais qualquer sinal vital de minha parte. Em desespero juntei, quem sabe, meu último sopro de vida e afirmei com a voz trêmula e fraca:
- Euu pó-posso provar.
A Morte me soltou e indagou:
- Mas que sujeitinho metido! Pode provar o que?
Foi quando afirmei, já mais firme, com os sinais vitais perceptíveis:
- Que você já se enganou.
Então veio a proposta da Morte:
- Vamos lá! Dê-me um só exemplo de engano de minha parte, que deixo você aqui por enquanto. Ou seja, afinal você num é imortal, então mais cedo ou mais tarde eu volto, mas fico aguardando um novo mandado.
Como falei anteriormente, não sei quanto tempo pensei, apenas não conseguia encontrar nenhum caso de engano da morte, de repente pronunciei desesperado:
- Jesus!!!
Foi quando a Morte esbravejou:
- Ah, não!!! Você também!
Aproveitei o momento de vulnerabilidade que a Dona Morte deixara transparecer e argumentei:
- De fato! Está lá no Novo Testamento, V. Exa. bem que chamou Jesus, mas em 72 horas lá estava ele de volta. É um precedente! Jurisprudência divina e do mais Douto gabarito.
- Num é bem assim - retrucou a morte – Jesus tinha que ressuscitar, fazia parte do combinado. Ademais, ele é Deus e pode tudo!
- Deus-homem! Portanto um homem. Por conseguinte é “alguém”.
- Nada disso, vamos lá – o falar da Dona Morte, mais uma vez fazia meu corpo se tornar imperceptível.
- Calma, calma! Trato é trato! Pacta sunt servanda! Eu falei “Alguém que você ‘guiou’ na hora errada. Não há?”. E você me desafiou a provar. Provei, pois se Jesus é Deus, é também um Deus encarnado, um homem também. É o “Alguém” mais importante da história da humanidade.
- Ai, Deus! – Disse a Morte e continuou:
- Você num entende, eu não errei com Jesus, pois eu não tinha guiá-Lo, pois Ele sabia o caminho.
- Aí não é justo! Como posso ser condenado por algo que não entendo!?? – Arrisquei essa já no desespero.
- Ah, não! Algo que não suporto é ser acusada de injusta. Deixa-me consultar o Salvador aqui.

Um minuto depois...

- Sei não! Às vezes nem eu entendo! Olha só Doutor... Tua gripe foi curada. Passe bem, por enquanto... – E assim a Dona Morte se foi.

E eu que criticava a frase, tantas vezes, aposta nos pára-brisas alheios: “Só Jesus Salva”. Bem a história Dele me salvou, ao menos, temporariamente, posso continuar trilhando meu caminho.
 
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