quarta-feira, 24 de março de 2010

E-HOMEM

Na era da cibernética, somos dados em data banks. Embora seja inevitável a lembrança de Einstein quando afirmara que “Deus não joga dados!”. O mundo nos conhece e nos controla. Não era diferente com Júlio, mas o Júlio era diferente, isso sim, com certeza. Não que não tivesse capacidade de se adaptar as mudanças impostas pela sociedade contemporânea. Em verdade, tinha sim, tanto que era um solteirão convicto. Mas, não sentia apelo para esta adequação digital, o que, de certa forma, o deixava a margem do processo de informatização do mundo. Mas a empresa que trabalhava não queria perder o bonde da história e passou a perseguir a alcunha de “moderna”. Afinal, vivemos a era do «.com».

Neste novo paradigma de administração, todos os funcionários de escritório ganharam acesso a internet e um e-mail próprio na empresa. Júlio, pouco afeito a esta tecnologia, demorou quase um mês para apreender a enviar os relatórios via e-mail para a presidência da empresa. E esta habilidade custou-lhe a fama de “e-xpert”. No cafézinho, quando passava por perto, alguém logo falava:

- Dr. E-xpert! E aí? Já aprendeu a ligar o notebook?

Os seus colegas de trabalho resolveram tirar uma onda com Júlio. Cadastraram o e-mail dele num site chamado E-ncontro. Trava-se de um site de busca de companheiros e de encontros em geral. Dentre uma gama variada de serviços, era ofertado o serviço de amizade virtual. Onde após o preenchimento de um cadastro de perfil a própria empresa “criava” um AVP - amigo virtual pessoal. O pobre do Júlio foi uma vítima mais que frágil, na verdade indefensável. Passou meses de namoro, diga-se de passagem, dos bons(!), com uma namorada virtual. O nome dela: Nara. Foram meses até o primeiro beijo, e mais alguns para uma relação mais virtualmente sexuada. Ao final, Júlio não tinha dúvidas, Nara era a melhor experiência sexual que tivera, niguém poderia superá-la no teclado. E na cama?! Bem, de que importava?! Para Júlio a tela de seu notebook se tornara a alcova mais inebriante que a vida lhe permitira acesso. Nara era a senhora de seus olhos e ouvidos, provedora de seus arrepios mais espetaculares.

Júlio estava apaixonado, falara, até, em casamento para os mais próximos. Isso se Nara se decidisse pela materialização da relação. O problema era que, para Júlio, Nara era sua alma gêmea. A piada se tornou, cada vez mais, sem graça. Como na canção do Bee Gees:

"I started a joke
Which started the whole world crying

But I didn't see

That the joke was on me"

Os colegas não tinham mais coragem de assumir a peça que pregavam em Julio. Tornaram-se reféns da fábula que arquiteram. Sentiam uma pena profunda por Júlio, ao passo que se auto repugnavam pela diabólica situação a que se submeteram. Acabaram por decidir contar tudo. Em uma carta anônima, detalharam, passo a passo, a fria biografia inescrupulosa de Nara. Neste triste momento, os “colegas” de trabalho revelaram o sórdido joguete, destruindo a humanidade de Nara. Era o fim de algo inexistente, mas, inexplicavelmente, presente na vida do Júlio. Na verdade, Nara estava totalmente incorporada a sua rotina, fazia parte do seu dia e, principalmente, de sua noite.

Traído pela tecnologia que ignorava, mas compensado pelo amor que encontrara, Júlio prosseguiu os contatos. Não importava quem fosse Nara. Passou a adimplir a mensalidade, antes paga pelos colegas de trabalho. Sentia-se como um pai de família provedor. Na verdade, tudo funcionava de forma simples em sua mente. Simples assim: Era Nara e bastava. Era alguém importante que se importava com ele. E este carinho virtual era seu, ou melhor deles, de Júlio e Nara. Ao fim de cada entrega, ele sempre a imaginava exausta, procurando a carteira de cigarros, ainda, trôpega. Para, logo em seguida, desfrutar de cada tragada, revivendo a lascívia de Júlio.

Não sabemos bem como anda a relação de amor de Júlio. Mas que ele amou, amou, e, assim, fez estória. A partir de então passamos a compreender que, em verdade, no mundo global da informação instantânea e digital, somos todos códigos compostos de elementos diversos, escravos de combinações aleatórias, cujas senhas pertencem ao acaso. Sorte de Júlio que, como tão poucos, na sofreguidão do rush cibernético cotidiano, encontrou um amor verdadeiro.

sábado, 13 de março de 2010

O ESPASMO

Martinho era um namorado exemplar. Daqueles que as mulheres quando ouvem notícia sentenciam: «Queria um assim!» Marlene tinha ciência disto, e zelava por seu noivo com todo carinho do mundo. Constantemente, confidenciava com sua mãe e amigas os gestos nobres do noivo, seus galanteios e, principalmente, o respeito que Martinho a tratava.

A verdade é que Martinho merecia sua fama. Sempre de bem com a vida, tinha uma filosofia um tanto sui generis quanto aos relacionamentos amorosos. Costumava dizer que:

- Relacionamento quem faz são os relacionados. Nada mais que isso. Aliás, só isso, e pronto!

Por isso, evitava bebedeiras e, mais ainda, qualquer contato próximo com mulheres. Seus amigos zombavam, mas no fundo todos invejavam a capacidade de Martinho de driblar as oportunidades perigosas. Se ia ao racha de futebol, acompanhava os amigos até a cervejaria, mas após o primeiro, ou no máximo segundo gole, saltava da cadeira e:

- Vou nessa! A Marlene me espera... E mulher como ela não existe!

Realmente, Marlene era linda. E tinha um corpo inacreditável. Centímetro por centímetro, poderia ser inspecionado sem qualquer imperfeição. Uma deusa grega, no Olimpo de Martinho.
Certa vez, no trabalho, uma colega lhe convidou para tomar um chope para aliviar o estresse. E olha, que essa colega não era qualquer uma não, era, simplesmente, a Lívia Campos, sobrinha do governador. Todos da empresa diziam que ela estava na do Martinho. Mas ele, no dia do convite, a chamou para um canto de parede e soltou:

- Olha só Lívia, eu sou Noivo! Entendes? E não posso tá aliviando estresse por aí! Ok? Ou devo chamar a Marlene?

A pobre Lívia, renegada dessa maneira, nunca mais ousou dirigir-lhe qualquer convite ou insinuação.

Certo dia, Martinho recebeu a ligação que o marcaria. Uma voz feminina rouca e lânguida. O impulso inicial foi destratar a oferecida, mas aquela voz não merecia desprezo. Pelo contrário! Era uma voz atrativa, daquelas que soam como verdadeira melodia aos feromônios. Uma voz de sereia, cujo prazer de audição enlouquece e fascina. Enfim, Martinho sentenciou que a voz merecia ser melhor e mais ouvida. No entanto, Martinho avisou logo:
- Sou noivo! Ouvistes?!

No entanto a reposta foi um simples:

- Eu sei... e não me importo. Simplemente, não ligo! E te dido mais, não tenho interesse algum em acabar seu noivado com a Lene...

Desde então, Martinho era tentado dia e noite. Recebia ligações com elogios. Mensagens anônimas no celular. O que mais lhe intrigava era que a interlocutora anônima de certa forma lhe policiava os passos. Neste mistério, permaneceu por meses. Até que aquela bela voz o convidou para um encontro. Martinho relutou, mas aceitou. O encontro fora marcado...

Martinho chegou no centro da cidade, e, de frente à pousada que combinou, utilizou um orelhão para ligar para Marlene, certificando-se que a mesma encontrava-se na faculdade. Respirou fundo e lentamente, tentando controlar seus batimentos cardíacos. Olhou o dizer luminoso com o nome do estabelecimento de hospedagem e adentrou em suas dependências. Procurou o corredor que levava aos quartos, seguiu até o quarto 130. Olhou a maçaneta atentamente, agarrou-lhe e suavemente abriu a porta. Lá estava...

Helena! Ou melhor, Dona Henlena, sua sogra! Em uma convulsão inebriante sua vida fora devassada por si próprio, numa espécie de retrospectiva íntima e não autorizada. Lembrava de Marlene. De Seu Bento, um homem tão bom... Mas a realidade era patente e estava literalmente desnuda em sua frente. Ou melhor, estava apenas com um belo vestido branco e decotado nas costas, sem qualquer lingerie, um anjo tentador e lascivo. E neste mar revolto de conflito e aflição não podia deixar de reconhecer a esplendorosa forma de Helena. Como pudera nunca desejar a D. Helena?

Naquele instante, Helena deslizou pelo carpete se aproximando de Martinho. Pegou-lhe a mão e o conduziu até a beira da cama. Abriu-lhe a camisa e o acaríciou, enquanto se aproximava. Depois, tirou-lhe a camisa, o cinto, os sapatos. Beijou-lhe o abdômen. Levantou e retirou o vestido, abraçando-o com força. Foi quando, consumado pela culpa e pelo desejo, ao ser tocado, levemente, por Helena, que com as pontas dos dedos do pé percorreu-lhe a perna, Martinho tentou falar. Tentou ainda explicar-se. Tentou ao menos agarrá-la, mas um espasmo o derrubou. Um espasmo cruel expulsara sua virilidade e todo seu desejo. Uma erupção de sementes que tornou-lhe um deserto sem vida. Sentiu-se humilhado, e se recolhera ao chão, encolhendo-se como um feto. Helena insistiu com beijos em sua face, mas Martinho já não estava lá. Desiludida Helena o deixou inerte no solo.

No Domingo, todos se reencontraram, quando sentados a mesa, com toda a família reunida, marcaram e celebraram o casamento de Marlene e Martinho.

sexta-feira, 5 de março de 2010

O ESPELHO


A amizade é um dom muito especial. Uma dádiva divina que não está ao alcance de todos. Fala-se, até, em “amizade verdadeira”. Ora, mas seria a falsa amizade uma expressão de fraternidade? Não nos parece. Por isso, Jonas, Berg e Matos eram privilegiados. Possuíam daquelas amizades que atravessam o tempo e unem as famílias. Frutificaram, inclusive, uma rara amizade feminina entre suas companheiras. Tanto que os casais convencionaram um almoço no primeiro domingo de cada mês. Foi a forma que encontraram de manter contato permanentemente, mesmo diante das obrigações desta pós-modernidade caótica.

Conforme combinado, no primeiro domingo de março, chegaram Matos e Sônia a casa de Berg e Laura, onde já se encontravam Jonas e Cíntia. Após as folias introdutórias balanceadas sempre das piadas da moda lá estavam sentados junto a um pequeno centro de vidro a saborear uma ótima cerveja gelada, daquelas que afetam as obturações mas fazem dengo na alma. Os assuntos iniciaram por trabalho, família e depois política. Este último tema sempre meio polêmico diante da diversidade ideológica dos compadres. Matos ultra-direitista do calibre do PRONA, mas sem qualquer apego a esta sigla. Jonas como bom funcionário público era militante petista mas andava meio envergonhado, diante do que chamava de “fogo amigo” advindo do governo que tanto sonhara e defendera. Berg era empresário ativista liberal financiava candidatos do PR e DEM, por entender serem estas as siglas mais preparadas num mundo globalizado e pertencente à livre iniciativa.

Mas foi na vereda da política que surgiu outro tema em debate: o homossexualismo. Jonas elogiara a iniciativa de uma Deputada do PT por apresentar um projeto de lei instituindo o dia do “Orgulho Gay”. Berg confidenciou que não tinha conhecimento desta propositura e afirmou que apesar de não ser contrário, também não tinha nada a comemorar. No entanto, Matos repugnou a idéia com veemência. Afirmou Matos que tal projeto atentava contra a lei humana e contra a lei divina.

- É um pecado! - bradava Matos com eloquência..

E nesta miscigenação entre o mundo dos homens e o Olimpo dos Deuses o debate esquentou. As mulheres logo se aproximaram, e com naturalidade todas se posicionaram a favor do projeto em prol da causa homoafetiva. Berg sempre escorregadio ponderava o lado positivo do projeto em termos de livre manifestação do pensamento, dignidade da pessoa humana, mas admitia que receava um próximo passo rumo a legalização plena e irrestrita da família gay, ou seja, da adoção realizada por homossexuais. Matos embora sitiado pela maioria sustentava seu repúdio. Até que perdeu o controle, e falou:

- Bom pra gay é bala e pau! A primeira fura ele e o segundo amansa!

Neste momento, sua própria esposa, Sônia, exclamou:

- Afe! Quanta ignorância!

De alguma forma, o ambiente pesou e um constrangimento geral acometeu a todos. O assunto foi finalizado, comeram quietos e se despediram acanhados. Certamente, todos comentariam o episódio lamentável.
Naquele dia Sônia e Matos não trocaram mais nenhuma palavra, numa espécie de guerra fria tão comum aos casais em conflito. Mas quando Sônia cedeu ao sono, o acontecido ainda martelava na consciência de Matos. Na sua mente os dizeres: “Quanta ignorância!”, “Gay”, “Pecado”, “Ignorante”. Como um pé-de-lã, caminhou até o banheiro, sacou do box um batom de Sônia, maquiou-se e passou a se olhar, num misto de Narciso e Fera. Achou-se lindo. Sentiu-se diferente. Teve medo de ser descoberto, ao ouvir o primeiro mínimo ruído, de sobressalto, desfez toda a produção. Não entendia, mas estava convicto de que não mudara, apenas se descobrira.
 
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