sexta-feira, 5 de março de 2010

O ESPELHO


A amizade é um dom muito especial. Uma dádiva divina que não está ao alcance de todos. Fala-se, até, em “amizade verdadeira”. Ora, mas seria a falsa amizade uma expressão de fraternidade? Não nos parece. Por isso, Jonas, Berg e Matos eram privilegiados. Possuíam daquelas amizades que atravessam o tempo e unem as famílias. Frutificaram, inclusive, uma rara amizade feminina entre suas companheiras. Tanto que os casais convencionaram um almoço no primeiro domingo de cada mês. Foi a forma que encontraram de manter contato permanentemente, mesmo diante das obrigações desta pós-modernidade caótica.

Conforme combinado, no primeiro domingo de março, chegaram Matos e Sônia a casa de Berg e Laura, onde já se encontravam Jonas e Cíntia. Após as folias introdutórias balanceadas sempre das piadas da moda lá estavam sentados junto a um pequeno centro de vidro a saborear uma ótima cerveja gelada, daquelas que afetam as obturações mas fazem dengo na alma. Os assuntos iniciaram por trabalho, família e depois política. Este último tema sempre meio polêmico diante da diversidade ideológica dos compadres. Matos ultra-direitista do calibre do PRONA, mas sem qualquer apego a esta sigla. Jonas como bom funcionário público era militante petista mas andava meio envergonhado, diante do que chamava de “fogo amigo” advindo do governo que tanto sonhara e defendera. Berg era empresário ativista liberal financiava candidatos do PR e DEM, por entender serem estas as siglas mais preparadas num mundo globalizado e pertencente à livre iniciativa.

Mas foi na vereda da política que surgiu outro tema em debate: o homossexualismo. Jonas elogiara a iniciativa de uma Deputada do PT por apresentar um projeto de lei instituindo o dia do “Orgulho Gay”. Berg confidenciou que não tinha conhecimento desta propositura e afirmou que apesar de não ser contrário, também não tinha nada a comemorar. No entanto, Matos repugnou a idéia com veemência. Afirmou Matos que tal projeto atentava contra a lei humana e contra a lei divina.

- É um pecado! - bradava Matos com eloquência..

E nesta miscigenação entre o mundo dos homens e o Olimpo dos Deuses o debate esquentou. As mulheres logo se aproximaram, e com naturalidade todas se posicionaram a favor do projeto em prol da causa homoafetiva. Berg sempre escorregadio ponderava o lado positivo do projeto em termos de livre manifestação do pensamento, dignidade da pessoa humana, mas admitia que receava um próximo passo rumo a legalização plena e irrestrita da família gay, ou seja, da adoção realizada por homossexuais. Matos embora sitiado pela maioria sustentava seu repúdio. Até que perdeu o controle, e falou:

- Bom pra gay é bala e pau! A primeira fura ele e o segundo amansa!

Neste momento, sua própria esposa, Sônia, exclamou:

- Afe! Quanta ignorância!

De alguma forma, o ambiente pesou e um constrangimento geral acometeu a todos. O assunto foi finalizado, comeram quietos e se despediram acanhados. Certamente, todos comentariam o episódio lamentável.
Naquele dia Sônia e Matos não trocaram mais nenhuma palavra, numa espécie de guerra fria tão comum aos casais em conflito. Mas quando Sônia cedeu ao sono, o acontecido ainda martelava na consciência de Matos. Na sua mente os dizeres: “Quanta ignorância!”, “Gay”, “Pecado”, “Ignorante”. Como um pé-de-lã, caminhou até o banheiro, sacou do box um batom de Sônia, maquiou-se e passou a se olhar, num misto de Narciso e Fera. Achou-se lindo. Sentiu-se diferente. Teve medo de ser descoberto, ao ouvir o primeiro mínimo ruído, de sobressalto, desfez toda a produção. Não entendia, mas estava convicto de que não mudara, apenas se descobrira.

Um comentário:

  1. Hum.. estava faltando o meu "dedinho" de comentário..
    afinal, não queremos mudar o curso natural de como 'a vida continua sendo', não é.. ;) Até porque, mudanças nem sempre são fáceis..

    Novamente, gostei do teor reflexivo do texto (característica, diga-se de passagem, sempre presente nos contos do Dr André).
    Acho que o texto tem por foco a revelação da contradição entre a "máscara" e o real(verdadeiro ser) dos indivíduos.
    Esse paradoxo de sentimentos(que, querendo ou não, existe - seja em 'doses'/intensidades maiores ou menores - em cada um dos seres humanos)..o paradoxo entre a "casca" e seu conteúdo, a fachada e a essência, a razão e a emoção, o escondido e o revelado, a concepção do "certo e errado", o que 'somos' e o que 'devemos ser'...enfim...

    Acho que o texto - embora fale sobre a grande "descoberta" de Matos - ele nos desperta para a análise crítica e subjetiva(de cada um de nós)sobre nós mesmos.. a qual só pode ser revelada no "Espelho".
    O Objeto no qual olhamos para nós mesmos.

    O que eu achei mais interessante de tudo, foi justamente o próprio "Espelho"!
    Porque o espelho nada mais é que um objeto onde se pode ver o corpo... mas, se pararmos para observar bem, (e no texto mostra isto) a capacidade do espelho pode nos mostrar algo que vai muito além do que podemos ver.

    No espelho podemos ver também a nossa alma!

    Bem, finalizo aqui meu comentário com uma frase que desconheço a autoria, mas achei interessante:

    "É preciso termos muito bom senso para sentirmos que não temos nenhum."

    Um grande abraço Dr.
    Como sempre.. Parabéns por sua obra!

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