domingo, 14 de fevereiro de 2010

A CERA


Magnólia era de uma família de classe média, com ganhos módicos. Com muito esforço seus pais lhe permitiram frequentar bons colégios. Foi o suficiente para que a inquieta filha aproveitasse a oportunidade para conquistar um bom partido. Ela nunca tinha se disposto à ser mãe. Muito menos, uma que se possa chamar de exemplar. Pelo contrário, casou com Jorge por interesse e jamais escondeu que não pretendia nem sequer dar-lhe um filho. Era vaidosa demais para se imaginar gorda. Não! Nem pensar! Mas se há uma certeza neste mundo carnal e banal, é que nada é certo. Menos de um ano de casada, lá estava Magnólia: grávida.

Durante a gestação a neura familiar foi razoavelmente potencializada. Magnólia exigia uma série de coisas, próprias das grávidas, mas com detalhes típicos de uma mulher alienada e fútil como ela. Não bastava fazer a hidroginástica com personal trainner, nem possuir nutricionista neonatal, ou mesmo comer apenas frutas frescas e produtos diet e light. Sugou literalmente a alma de Jorge. Tanto que o pobre coitado parecia está num enterro no dia em que Leopolddo nasceu. Isso mesmo “Leopolddo” com dois “Ds”. Se fosse para sofrer, que o sofrimento gerasse algo especial.

Leozinho, como era chamado, teve todo o carinho que um Zé-ninguém poderia ter da mãe. Era renegado, e destratado constantemente. Nem sequer foi amamentado por Magnólia, apesar desta ter tido muito leite, era por demais arriscado amamentar. Ora, “Dá estrias!”, esbrajava. Assim, de babá em babá Leozinho foi sendo criado. Seu choro, quando não ignorado, era abafado. Brincadeiras apenas com o pai, Jorge, mesmo assim raramente, a vida de empresário era massacrante, e não lhe restava tempo suficiente para a paternidade.

Esta rotina se seguiu até o fatídico ano de 2003, quando Leozinho já estava com cinco anos de idade, e apresentava problemas comportamentais de isolamento. Jorge andava preocupado com os negócios e sentia-se culpado por Leozinho, pois afinal segundo Magnólia teria sido ele o responsável direto pelo nascimento. Neste ano Jorge teve um infarte fulminante e letal. Magnólia que desconhecia esforço de qualquer natureza, mal se deu o trabalho de requerer a certidão de óbito. Homérica foi sua popa ao tentar assinar a procuração para o inventário e a caneta insistia em falhar. Dizia sempre que nascera no país errado, na família errada, odiava todo a atraso que afirmava testemunhar.

Com a morte de Jorge, ela estava com a empresa nas mãos. Não demorou sequer um ano para que conseguisse endividá-la completamente. Até que chegou-se ao ponto de ter sido aberto um processo de natureza falimentar contra a BOOK SHOW. Era o fim desta simpática cadeia de livrarias, agora, condenada pela impontualidade em seus compromissos empresariais.

Sem nenhuma qualificação que se somasse a sua estúpida eloqüência, Magnólia teve que retraçar sua metas de consumo e posição social. Cogitou trabalhar, mas nada formal se adequava ao seu perfil. Esdutar nem pensar, Resultado: a prostituição foi a solução mais pragmática. Aos 31 anos, Magnólia tinha um corpo escultural, portanto tinha o capital básico para o início do empreendimento. Os primeiros clientes foram os colegas de Jorge, e logo os convites apareciam. Era uma prostituta cara, a Magnólia. O programa saía em torno de R$ 1.000,00 (mil reais). Vez por outra passavam um cheque sem fundo, mas ela se acostumou com estes ossos do ofício de natureza cambial.

Assim, passou-se dois anos. Leozinho com suas babás, Magnólia com seus clientes. E numa Sexta-feira Santa toca o telefone. Ao atender Magnólia, recebe uma grande proposta de trabalho. Daquelas que não se pode perder e que deve-se estar sempre preparada. O cara era rico, velho e esbanjador. Uma presa ideal para ela. Mas ao tentar anotar o endereço do hotel, onde seria o encontro, todas as canetas falhavam. Leozinho se aproximara e tentara dizer algo, quando Magnólia de pronto o empurrou, e o xingou. Na sua ótica, ele sempre atrapalhava, representava o maior estorvo em sua vida. Chorando, a pobre criança orfão de pai e mãe viva, corria para o seu quarto e se entregava ao isolamento. De sua janela, após alguns instantes, avistava sua mãe pegar o carro e sair. Ficaria mais uma tarde observando a vizinhança da janela, enquanto com a ponta do lápis limpava os pequenos ouvidos sedentos de carinho.

6 comentários:

  1. É um belo texto que nos permite conseguir visualizar (sentir) a estória, "ver" os personagens ;)

    Gostei porque é regado de criatividade, uma vez que consegue passar uma mistura interessante de coisas que variam desde o cenário/tempo, a conduta humana, suas necessidades de carinho, seus defeitos, a importância dada ao dinheiro, bem como toca em aspectos de conduta moral... isso tudo envolvendo ainda situações que nos remete a pensar na aplicação do Direito!

    Muito bom!

    Parabéns André!

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  2. "Magnólia", confesso que tive momentos durante a leitura de indignação,e em alguns quis até rir, porém no mundo em que vivemos as "Magnólias" estão cada vez mais presentes e constantes. É um fato!
    A sociedade sempre impondo o culto ao corpo, e o que verdadeiramente tem valor vai morrendo a cada dia, pessoas vazias de credo,cada dia mais crentes que podem realmente ser donas de si, programam se vão ter filhos, quando casarão, quando morrerão, se adoecerão...mas será que têm mesmo o domínio sobre elas mesmas???!!! Pouco provável.
    O cuidar de si interna e externamente é imprescindível, o cultuar a si é que é inaceitável.
    Não sei por que as pessoas insistem em esquecer e não aceitar de onde vem e para onde vão:

    "...porque você é pó,e ao pó voltará". ...(Eclesiastes 3:20)

    Muito bom mesmo o texto!!!

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  3. O estilo me é familiar, lembra o do velho Rodrigues...
    Há aqueles que menosprezam a sorte, mas o que dizer do Leozinho? Prefiro tê-la sempre ao meu lado...
    O fato é que até para nascer, precisamos de sorte. E o poeta já dizia: "que os destinos foram traçados na maternidade".
    Muito boa a crônica, negrinho, parabéns!

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  4. Parabéns pelo blog e pelo texto, caríssimo André. Você é talentosíssimo em tudo o que faz, por isso a boa qualidade da narrativa não me surpreendeu. Com efeito, é possível vislumbrar a influência de Nelson Rodrigues e de Rubem Fonsêca nas entrelinhas. Somente uma sugestão quanto ao título do blog: que tal "A vida continua como ela é" ou "A vida como ela é e continuará sendo"? Eu acho que ficaria mais sonoro assim. A propósito, não deixe de visitar meu blog: www.osliriosnaonascemdalei.blogspot.com. Abraços deste seu amigo.

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  5. Aos amigos em geral, muito obrigado pelas exageradas palavras. Espero que continuem comentando e dando sugestões...
    Narla e Amanda foram pelo subjetivismo... Dema pelo pragmatismo... É bom saber o que pensam sobre o texto.
    Grande Talden, sempre generoso. A sugestão é boa, gostei de "A vida continua como ela é"... mas manterei o título pois transpassa uma idéia de continuidade entre o que "era" e "é". Beijos e Abraços

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  6. Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina quando tem um filho melhora. (Nelson Rodrigues)

    Será que isso aconteceu com Magnólia?

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