sábado, 27 de fevereiro de 2010

A CASA


A casa era um lugar como outro qualquer. Portas, janelas, quartos e gente. Não sei qual desses elementos caracteriza mais a casa. Uma casa sem porta não é casa. Uma casa sem janela, também, não é. Uma casa sem quarto? Pode ser um escritório, mas nunca uma casa. E uma casa abandonada é prédio, não casa. Mas nada, de fato, era igual a casa. Pois, na casa, tinha tudo que era necessário, talvez até em excesso. Mas, se a falta atiça o lado axiológico humano, o excesso atiça o desperdício, que por sua vez provoca a falta. É o ciclo de tudo e dos opostos diametralmente dispostos à indisposição. Mas eu falava da casa...

A casa tinha poucas portas, o suficiente. Uma frontal, maior, uma dos fundos, menor, e uma do lado direito que dava para a varanda lateral, essa última local de ressono das pessoas e de bons e velhos jogos humanos. As portas da casa, inicialmente, não se abriam com facilidade. Melhor dizendo... Eu não conseguia abri-las. Não que não soubesse abri-las, mas as pessoas - algumas de fato, outras de direito - não me permitiam. Tive que fingir coisas. Tipo a responsabilidade, para potencializar meu acesso às portas. No fim, entrava e saia quando bem entendia. Talvez, eu tenha saído demais... Talvez, o ficar tornara-se impraticável às dimensões da casa, afinal eu cresci.

Bem, e as janelas?! Que lindas janelas! Mostraram-me o mundo e, de lá, exercitei minha curiosidade e observação com o devido padrão de segurança. Ora, eu estava em casa, e, na casa, eu enfrentava a rua sem medo. Na rua, muitas vezes, quis estar em casa. Mas o melhor das janelas era na época em que imperava a ausência de grades. Pula janela, pula da janela, pula pela janela, pula para janela, o negócio era pular. Verdade que teve quedas, mas as quedas ensinaram que a vida é oscilante e conflitante ou ação e reação. No entanto, as belas janelas adornadas se foram com a grade. Uma necessidade por um prisma, mas um crime por outro. Acabaram-se os pulos na era dos cadeados.

Os quartos eram as trincheiras da casa. Cada pessoa tinha o seu e o defendia das demais. Afinal, de certo modo, toda casa é um condomínio, com áreas comuns e unidades autônomas. Bem, em verdade, tive que lutar muito por essa autonomia. Era o mais, novo e meu território era sempre o mais invadido, um pouco terra de ninguém. Mas a puberdade chegou. Na revolta, a busca pelo respeito. Acho que a casa nem sempre me respeitou como eu queria, mas ela sempre me acolheu. Meu quarto era a parte da casa que era mais minha. Colei o que queria na parede, maltratei a ordem, me expressei por meio da dança, do canto, lá fui um artista anônimo e recluso. Lá, era feliz.

Enfim as pessoas. Eram muitas. Mas eram todas necessárias. Não entendo a casa sem qualquer uma delas. A ausência de uma delas extinguiria a casa. Porém, a agitação das pessoas fazia a casa parecer pequena. Muitas vezes me irritei com o que chamava "falta de privacidade". Hoje, enxergo que era a impossibilidade do exercício do egoísmo. O egoísmo estava lá. Não só em minha pessoa, mas em todas as pessoas. Sendo que todas as pessoas da casa, na casa, inviabilizavam a expansão e, consequentemente, o exercício do egoísmo. Aos poucos, todas as pessoas foram abandonando a casa. A casa reagia se adaptava, mas nunca tornara a ser a mesma. A diáspora ordinária e consentida das pessoas fizera a casa definhar. Sem a agitação, as discussões, os choros, os abraços, os sorrisos em abundância a casa não era mais a mesma. Era uma casa doente, triste, mas todas as pessoas que saíram, numa teimosia atéia, se negavam a confessar sua participação no assassinato da casa. A agitação cotidiana, só se repetia em datas predeterminadas, que serviam apenas como um tratamento paliativo para casa. A casa ansiosa esperava, sempre, pela próxima reunião das pessoas. Nessas reuniões o assunto era, inevitavelmente, a casa. A casa adorava, se sentia importante, mas, na mesma madrugada, lá estava ela abandonada novamente. Melancolia e saudade.

Chegou, então, o dia em que a última pessoa deixou a casa, e todos aqueles que a tinham abandonado não suportavam reviver a casa. Foi o último ato protagonizado pelas pessoas e nos papéis coadjuvantes, a imobiliária e o empresário. A casa foi demolida e sob seu terreno ergueram um shopping sem qualquer janela. As portas sempre selvagens se antecipavam a qualquer transeunte, na tentativa de engoli-los. Seus quartos frios, agora, tornaram-se aposentos do rei dinheiro e da rainha pecúnia. Quanto às pessoas, elas iam ao shopping, mas lá suas histórias eram tão impessoais e decadentes, já não havia amor. Pois, o amor ficou nas lembranças da casa.

4 comentários:

  1. Nostálgico, leve e feliz... (:

    Como leitora assídua e um pouco ansiosa, fico sempre querendo ler mais.

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  2. Hoje serei breve em meu comentário..


    Dr André,só quero te fazer um pedido:
    Publique um livro com suas crônicas!

    Sem palavras..
    Eu simplesmente AMEI "A CASA"..

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  3. Melhorando o uso das vírgulas, pode ser um artista completo. Mas o que completa o que, afinal?

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  4. A casa 😍 Que lindo, me fez refletir. Parabéns André! 😘

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