sábado, 20 de fevereiro de 2010

A náusea

Aquele dia tornara-se inesquecível para Beto. Naquela manhã, por volta das onze horas, quando despertou, sentiu-se metamorfoseado. Já não era o mesmo Beto que se jogou na cama, na madrugada daquele dia. Estava mudado e sabia que era para sempre. Pensava em Nara, incessantemente. Nunca conhecera alguém como ela. Impressionante como eles se deram bem, ontem, durante a noite quase que inteira. Na verdade percebeu que não conversara muito, mas também não beijara pouco. Aí! Por falar nisso, sua boca ardia. Água! Olhava ao redor e via um copo pela metade. Alívio! Institnto de sobrevivência... antes água quente, que ter que se levantar em busca de qualquer coisa. Ah, mas ontem...

De que importa o ontem? Importa o hoje! Naquele árduo momento, Beto estava lá, sozinho, ainda deitado, tentando juntar os pedaços de sua existência. Agregava os detritos de suas memórias para, ao menos, reconstruir o seu passado mais recente: o ontem a noite. E era inevitável, naquele estado ele se perguntar: “O que faço aqui?”, ou “Por que, aqui, estou?”. Não era só pensar, pois pensar incomoda, cansa. Mas o seu professor de filosofia - que era um saco - não cansava de pensar que Descartes pensava que era pensando que ele existia. Mas Beto sabia que isso não era verdade. Ontem mesmo, ele nem lembrava do que pensou, mas tem certeza que não pensou muito, mas a noite existiu e foi boa pra Caracas. Na verdade, Beto estava convicto de que se tivesse pensado muito não teria feito o que fez, não teria conhecido Nara e, aí, a noite não seria especial. Nem sabia ele, o que seria a noite de ontem sem Nara. Bem, não foi, e isso é que importa. Ou pelo menos importava, pois, agora, o que importa é repensar suas ações.

Beto tinha que estudar. No dia seguinte, teria uma prova medonha e não pegou no livro. Aos dezessete anos, a véspera é o dia oficial do estudo. Principalmente, a véspera da reposição, pois agora não tem mais jeito, ou vai ou racha. Por falar em rachar, a dor de cabeça estava rachando tudo! Mas pelo menos estava com Nara na cabeça... e como Nara beijava... ou melhor beijou... e por falar nisso a sua boca ainda arde. Tome água!

Mas voltando as reflexões betinas, ele não parava de pensar no que era. No estilo ser ou não ser, questionava-se: Era um caçador, ou caça? Ele pegara Nara, ou Nara o pegara? Propriedade ou proprietário? A propriedade é um roubo! Ou pelo menos uma roubada. Ele era de todo mundo, mas, até então, somente Nara aceitara a promoção. Provavelmente, os créditos eram da mudança de paradigma em suas operações de marketing. Ontem mentira muito. Foi um discurso elaborado na base do se-colar-colou. Ao fim, estava colado em Nara.

Estava ansioso, era verdade, mas se esforçava, heroicamente, numa resistência às reações orgânicas do desejo. Naquele momento, tão incerto, Beto se entregava às reflexões. Ligar ou não ligar para Nara? Mas como? Cadê o telefone? Esqueceu de anotar?! Ou esqueceu de pedir?! Vacilou... Nesses momentos é que Beto repensava suas condutas.

Mas enfim, Beto continuava ansioso. Uma ânsia incontrolável de viver, pois como que por instinto, sabia que tinha que repelir o que estava sentindo. Era algo novo que o fazia querer não existir ali como era, mas existiria outra forma de existir? E nessa crise existencial, brotava a náusea, e num espasmo violento a ânsia transformou-se em vômito. A primeira ressaca é tão eterna quanto o dia. Perdura até ser sucedida por outra. Mas, Nara não tinha sucessora, era única e eterna. Tanto que seria lembrada, sempre assim, «Nara», apesar de seu nome ser «Mara».

2 comentários:

  1. Outro texto regado por interessantes elementos..

    Não é segredo que sempre me admira a tua forma de expressar tua visão das coisas nas linhas que escreves Dr. André

    Esse texto em particular, me chamou a atenção para o grande teor reflexivo e existencialista vivenciado por Beto... Quando, na realidade, (e não raro!) nos deparamos com situações em que (igualmente à vivida pelo personagem), somos compelidos a nos render aos mesmos questionamentos existenciais...

    Outra coisa que me chamou a atenção foi a linguagem se adequando perfeitamente à realidade do texto. Usando de termos mais joviais como por ex: "Caracas" e "ou vai ou racha". rs
    Deixando a leitura mais leve e agradável.
    Fascinante!

    Gostei também de como alguns elementos aparentemente sem muita relevância (como o "copo de água"), ao mesmo tempo podem se apresentar como um leque de significados implícitos que jamais imaginaríamos.
    "Olhava ao redor e via um copo pela metade. Alívio!"
    Posso já estar "viajando" demais na minha análise, mas eu gostei de me perguntar se Beto via aquele copo metade vazio ou metade cheio!rs


    Parabéns por mais um belo trabalho, Dr.
    Fico muito orgulhosa de você!

    Um abraço

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  2. É errado pensar que a vida é um jogo e que, se algo correr não exatamente de acordo com as nossas expectativas, podemos jogá-lo de novo desde o início, com novas oportunidades de êxito. Não temos vida de “vídeo-game”! Seria uma tolice considerar que temos direito a um caminho de triunfos, sem sofrimentos nem desilusões, sem coragem nem heroísmo. Porque isso não sucede a ninguém e não é deste mundo.
    Aqui é preciso escolher e, depois, seguir em frente até ao fim. Por vezes com amnésia alcoólica, ânsia de vômito, mas com a certeza de ter vivido uma grande e momentânea paixão de boate!

    Abraço,

    Alexandre Cavalcanti

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